A Noite da Espera, Milton Hatoum
A Noite da Espera, Milton Hatoum
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Igrejinha, Restaurante Roma, W3, Asa Norte, Beirute, Asa Sul, Hotel Nacional, UnB, 406 Norte, Relógio de Taguatinga, Vale do Amanhecer, 105 Sul, Escola Parque, são nomes inconfundíveis para quem vive (ou viveu) em Brasília. Mas são incompreensíveis para aqueles que não tem familiaridade com a Capital Federal.
É nesses lugares simbólicos que se passa a maior parte de A Noite da Espera, o primeiro da trilogia O Lugar Mais Sombrio, de Milton Hatoum. O resto do livro se passa em Paris, em forma de referências de exilados ou, recorrentemente, nas entrelinhas de lembranças de São Paulo, e do litoral paulista, onde Martim, o narrador, passou a infância e a primeira juventude.
O enredo explora conflitos muito particulares de Martim, que de algum modo também espelham os dilemas públicos que o estudante universitário enfrentava. Há algo um pouco parecido no ar. As cenas de Brasília ocorrem entre 1968 e 1972. Contextualizam-se na era militar, evidenciando uma violência institucional que Hatoum se compromete em não apagar de nossa memória histórica. O livro é um relato contemporâneo de uma história contemporânea, que nos lembra as críticas de Eça de Queiróz nas Cidades e as Serras e na Ilustre Casa de Ramires. Não é arte pela arte. Não é literatura desinteressada. Não é relato estético. É militância pura.
Martim é egresso de um lar partido. Lina, a mãe, deixou o marido tirânico, colérico, religioso e reacionário para viver com um artista, que pai e filho não entendem, e muito menos toleram. Há um forte componente edipano na espera do filho pela mãe; o encontro nunca se realiza. O filho viajou de Brasília para Goiânia, aguardando a mãe, que de Minas teria se comprometido a visita-lo. Há uma longa espera em um hotel. O leitor sente com Martim a amargura do esquecimento. Compensa-se a indulgência com as cartas que Lina que envia para o filho. Um mistério. Afeto nas mensagens. Distanciamento na vida real.
As cenas se passam em Brasília porque Rodolfo, o pai, engenheiro, veio para a capital trabalhar na então pujante construção civil. O pai era um déspota, impiedoso, que parece projetar no filho o ódio que lhe causara a traição da mãe. Martim convive com estudantes universitários, vive com muita dificuldade, come em restaurantes inomináveis, namora, lê (muito), diverte-se, ensaia teatro, trabalha em uma livraria, conspira. Essas reminiscências são entrecortadas com passagens de um diário escrito em Paris, o que revela e anuncia um exílio que em algum momento ocorrerá.
Hatoum delira, mas escreve. O leitor prende-se no enredo, e comprova que se travava uma guerra muito desigual. Eram estudantes, a maioria imberbes, que associavam a libertação pessoal e o bem-estar geral a uma revolução na ordem política, que aconteceria a qualquer momento, ainda que não planejassem, objetivamente. Um romantismo geracional os impulsionava ao caos, do mesmo modo que a tísica atraía escritores e pianistas do século XIX, para quem a tuberculose era um privilégio raro. Enganavam-se. A tuberculose matava o trabalhador da indústria, em cujas fábricas cobria dezoito horas por dia. Do mesmo modo, a ditadura que Martim combatia sufocava brasileiros que agonizávamos desde sempre no Brasil, com pequenos interregnos de imaginária exuberância, a exemplo do que ocorrera na segunda presidência de Vargas e nos anos dourados de JK. Brasília, enquanto cenário, é, nesse sentido, uma paisagem ideal.
Hatoum constrói e descreve dois conflitos paralelos que seguem como retas que se encontram no infinito. Difícil a resistência para com a angústia do lar desfeito (não se sabendo as razões), ainda que necessária, como condição de sobrevivência pessoal. Complicada a chamada para a resistência para com a violência da política, ainda que necessária, como condição de sobrevivência comum.
Incompreensível, no entanto, quando essas violências se encontram. É o que sugere Hatoum, na medida em que Rodolfo e Lina, pai e mãe, ainda que relutantemente, e por diversas razões, tenham colaborado para que as cenas do livro se deslocassem do Planalto Central do Brasil para Paris. Um livro que convida à reflexão. Uma peça de resistência nesses tempos difíceis, quando se fala em liberdade, para que se mate a liberdade.