A seca como causadora de manipulações, mortes, mas também altruísmo: breve análise da obra O quinze.

 
O que leva o ser humano a não se sensibilizar com as fraquezas ou limitações do outro ser humano? Egocentrismo? Sentimento narcisista? Ausência de empatia? Falta de religião? Em O quinze,  da escritora modernista Rachel de Queiroz, percebemos incontáveis evidências da ausência de afeto, amor, compaixão – sobressaindo-se aspectos da animalidade que podemos vir a ter, da maldade que somos capazes de praticar com o outro apenas para saciar nossas vontades e necessidades imediatas.

Publicado em 1930, mas com temáticas tão atuais quanto naquele ano, o romance trata-se da grande seca ocorrida em 1915 no sertão nordestino, enfatizando o estado cearense.  A obra apresenta a luta constante entre o homem e a terra, uma verdadeira luta pela sobrevivência, onde quem tem mais explora sem dó nem piedade aquele que nada possui, aproveitando-se da sua ignorância e dependência – sendo descartado quando não estiver mais ‘servindo’ para nada.

Vimos em Os sertões que ‘o sertanejo é, antes de tudo, um forte’. Tal máxima é expressa e semanticamente extraordinária. A sequidão do solo tornou-lhe mais forte, adaptável, rude. A injustiça social, política, econômica e a falta de oportunidades também. De linguagem nada pedante, muito pelo contrário – há fortes referências ao palavreado regional, riquíssimo uso de metáforas, comparações e sinestesias (fazendo com que sintamos, de fato, parte do enredo); por ser um romance regionalista e de cunho social, O quinze se ambienta no sertão do Ceará, e nos apresenta diversas histórias de pessoas que lutam, à sua maneira, para mudar de vida, em busca de melhores oportunidades. O vaqueiro Chico Bento e sua família são alguns dos personagens que passam por dolorosos percalços nessa trama, fadados a sofrer, morrer de fome. Sem conseguir as passagens que o governo estava dando aos retirantes para irem à capital (Ceará), destina-se a pé mesmo, pois não há mais esperanças de chuva na região, e a dona da fazenda já pediu que abrissem as porteiras para o gado ir embora, como vemos nesse trecho:

Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes como numa agudeza desesperança. (QUEIROZ, 2010, p. 24).
[...] Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse. Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha... (Idem, 2010, p. 31)


Sem ter o que fazer, parte com a família (composta por ele, Cordulina, seus cinco filhos e a cunhada) para a capital, para de lá irem ao Norte. Mas a viagem não é das melhores, passam por inúmeras dificuldades, são humilhados, testados; o clã vai desfazendo-se aos poucos pelo caminho: um dos filhos (Josias) morre ao comer uma raiz venenosa sem que percebam; Pedro, o mais velho, desaparece provavelmente com um grupo de retirantes que passou por eles; para não morrer de fome, Mocinha, a cunhada, arruma um serviço de ajudante numa estação de trens, e acaba ficando por lá, mas sem muito sucesso; o filho mais novo, Manuel, é dado para que a madrinha Conceição o crie, garantindo-lhe saúde, educação... ou seja, vemos uma família inteira ser desfeita em consequência da vasta seca. É impossível lermos esse livro e não refletirmos sobre o sofrimento dos personagens, o que a vida deles representa, ou por qual motivo há tanta injustiça nesse mundo. Nesse contexto, fica evidente que quem mais precisa do auxílio e da ação do governo com políticas públicas de qualidade e que garantam equidade nas oportunidades é quem mais o governo explora, exclui, agride, mata.

Há um passagem em que Chico Bento, em desespero ao ver a insanidade da mulher e do filho pequeno – desnutridos, trêmulos e delirantes de fome e sede, mata uma cabra que ver no caminho – depois de terem andado por dias com o estômago vazio, pega sua peixeira e a mata ali mesmo... mas o dono do animal percebe, e toma o que é seu por direito, tachando-lhe ladrão (coisa que não era, nunca foi, mas a necessidade o fez) e o expulsando de suas terras. Tentou explicar-se, mas o fazendeiro pouco se importou. Depois de insistir no pedido, o dono atira as vísceras do bicho ao chão, gritando que ainda está sendo bom com o homem, que não era merecedor de nada depois do que fez... E, entre areia e sangue, as tripas são assadas num fogo improvisado ali mesmo. O trecho abaixo descreve esse momento: 
 
O animal soltou novamente o seu clamor aflito.
Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo.
E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em cheio por terra.
Chico Bento tirou do cinto a faca, que de tão velha e tão gasta nunca achara quem lhe desse um tostão por ela.
Abriu no animal um corte que foi de debaixo da boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas.
Rapidamente iniciou a esfolação. A faca afiada corria entre a carne e o couro, e, na pressa, arrancava aqui pedaços de lombo, afinava ali a pele, deixando-a quase transparente. (QUEIROZ, 2010, p. 71).
 

A personagem Conceição é, sem dúvida, à frente de seu tempo, possui vinte e dois anos, é professora e desenvolve trabalhos voluntários em um campo de concentração – lugar desumano, onde há uma imensidão de pessoas desempregadas, doentes, entregues à sorte. Pelas férias visita a avó D. Inácia, que reside no Logradouro – próximo a Quixadá, onde mora outros familiares seus.  Quando a seca persiste, e não há reza nem promessa que os acometa, e depois de muita insistência da neta, a avó decide morar com Conceição, porém só até chover e as coisas voltarem ao normal – deixa claro, pois é muito apegada aos seus bichos, plantações.

 -Deixar tudo assim, morrendo de fome e de seca! Fazia vinte e cinco anos que eu não saía do Logradouro, a não ser para o Quixadá!...
[...] Dona Inácia se apegara a tudo que a pudesse reter no sertão... (Idem, 2019, p. 38).


Outro personagem que se destaca no enredo é Vicente.  Nascera para a profissão de vaqueiro, desde cedo o é; tem três irmãos: Alice, Lourdinha e Paulo. Trabalhava de sol a sol para o último estudar, se formar, tornar-se doutor – como falam. Vaqueiro responsável em tudo o que faz, mesmo com tantas perdas na longa seca daquele ano de 1915, não largou a fazenda, não abandonou sua criação. Todavia, recursos já não mais possuía, o desespero começou a tomar conta dos outros caboclos: ovelhas, gados morrendo de fome e sede... Previstas para março, já haviam passados meses e nenhum sinal das chuvas...

Em síntese, O quinze é um livro emocionante, testemunha da luta dos sertanejos por um pedaço de terra digno para se viver. De caráter piamente denunciante, nos apresenta corrupções, injustiças sociais, ausência do respeito para com a miséria do outro, cuja maioria dos personagens agem em conformidade apenas com o que lhes convém – a velha troca de favores, a saber: mulheres que pegam crianças de colo ‘emprestadas’ (de outras mulheres) para pedir esmolas – acreditando que as pessoas se compadeciam melhor de sua situação; agentes de viagem leiloando passagens (detalhe: doadas pelo governo!) ao invés de entregá-las gratuitamente aos pobres e retirantes que procuravam ir à capital com suas famílias em busca de algo melhor; pessoas famintas, desesperadas com a mortandade das outras naquele  campo de concentração – onde iam vivendo de esmolas e doações dos outros moradores daquele lugar; a própria polícia negando auxílio ao um miserável que não havia encontrado o filho desde a noite anterior – e o delegado apenas o ajuda quando percebe que se trata de um compadre seu. Enfim, uma excelente obra para reflexão sobre a condição humana, seu trajeto de vida, lutas e ambições.
 
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. – 88ª ed.  Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.