A volta do gato preto, de Érico Veríssimo
A volta do gato preto, de Érico Veríssimo
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) viveu nos Estados Unidos da América em duas ocasiões: uma estada curta (por dois meses, em 1941) e uma estada mais alongada (por dois anos, de 1943 a 1945). Nesta segunda oportunidade, ao lado de esposa e filhos, Verissimo viveu na Califórnia (primeiramente na Universidade de Berkeley, em Oakland) e depois em Los Angeles. Suas impressões de viagem, e da vida norte-americana, na etapa final da segunda guerra mundial, estão gravadas em delicioso livro, A volta do gato preto.
Esse livro tem páginas memoráveis, relativas à vida norte-americana, na impressão de um brasileiro culto. Nesse sentido, o deslumbramento de Verissimo com aspectos centrais da vida norte-americana qualifica-o, de algum modo, como um Alexis de Tocqueville brasileiro. Tocqueville foi o francês que explicou os Estados Unidos em livro memorável (Democracia na América). Exemplifico com corajosa passagem sobre a vida religiosa do norte-americano. Para Verissimo, o tema religioso nos Estados Unidos (na época em que lá esteve, bem entendido) não era assunto substancialmente metafísico; o norte-americano, segundo Veríssimo, não se interessava pela questão da alma e pelas qualidades intrínsecas da fé e da devoção, enquanto problemas centrais na existência. Para Verissimo, em audaciosa passagem, a religião era para o norte-americano da época “(...) um tipo de gadget, de engenhoca (...) uma espécie de máquina de ir para o céu”.
Ainda que Veríssimo admitisse que fixava uma caricatura, o que não excluía a “parecença”, em suas próprias palavras, porquanto caricaturas e parecenças “têm sempre sua dose de verdade”. Reconhecendo que não era sociólogo ou ensaísta ou mesmo homem de ciência, Verissimo experimentava instrumentos de ficção para examinar problemas da realidade; algumas passagens do livro são entabuladas em forma de diálogos epistolares.
Veríssimo entendia que os norte-americanos eram “extrovertidos, objetivos, arejados e práticos, de sorte que querem [queriam] ver o problema da outra vida posto sobre bases deste mundo”. Indagando se havia algum santo norte-americano, o que relatava desconhecer, Verissimo impressionava-se com uma cultura não inclinada ao êxtase religioso. O escritor gaúcho nos dava conta do pragmatismo e do realismo, enquanto filosofias nacionais dos Estados Unidos.
O modo como os norte-americanos se relacionavam com o tempo também intrigava nosso célebre escritor. Para Veríssimo “o problema do tempo é muito sério num país que descobriu tantas formas de divertimentos, tantas atividades, e que não encontra tempo suficiente para gozar desses divertimentos e exercer essas atividades”. Essa curiosa questão também atormentou Max Weber, calcado no mote de Franklyn, para quem o tempo seria também expressão do dinheiro.
Assim, para Veríssimo, os norte-americanos inventavam coisas que simplificavam a vida e que espichavam o tempo. Ilustrava essa premissa com a máquina de lavar roupa: “Você compra uma dessas engenhocas, pega o livro que traz as instruções para o seu manejo, coloca a roupa suja no lugar indicado, aperta o botão, tudo de acordo com as recomendações do livrete, e a máquina começa a funcionar: você pode ir tratar doutra coisa, na certeza de que no momento devido a roupa sairá lá do outro lado, alva, limpa, imaculada, numa economia de tempo, esforço e preocupação”.
Religião, administração do tempo, cultura cívica, cinema, literatura, gastronomia, estética, relações interpessoais, política, guerra, são vários os tópicos que ocuparam a privilegiada especulação de Erico Verissimo, em livro absolutamente atemporal, porquanto captou no efêmero, no contingente e no fato diverso transitório, o que imanente, permanente e marcante numa civilização. Essa constatação realça a importante posição de Erico Verissimo em nossa história literária.