Sapiens, de Yuval Noah Harari
Sapiens, de Yuval Noah Harari
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Não existe justiça na história. É essa chocante afirmação um dos pontos centrais de “Sapiens, uma breve história da humanidade”, de Yuval Noah Harari, um livro badaladíssimo. Alçou seu autor, um jovem professor de história israelense, a uma merecida posição de pop-star. Harari é uma celebridade. Não tem Facebook, Instagram, ou participa de grupo de WhatsApp. Não teve conta no Orkut. Ao invés disso, estuda. Muito.
Harari esteve recentemente no Brasil, deu entrevista disputadíssima no programa Roda-Viva. Carismático, inglês idiomático com sotaque enigmático, instigante, Harari representa alguma inovação no mercado das editoras e das ideias. E que novidade! Procuro pontuar algumas que me chamaram a atenção.
A narrativa de “Sapiens” aproxima história, antropologia, biologia, matemática, e tantos campos transversais do saber, que conduzem a uma tentativa de resposta de uma pergunta central: como nós (sapiens) chegamos nesse ponto de domínio ao qual chegamos. Nossa decadência também pode ser iminente. Harari trata inicialmente das três revoluções que identifica como referenciais de uma suposta supremacia nossa: a revolução cognitiva, a revolução agrícola e a revolução científica.
Na revolução cognitiva alcançamos a habilidade de transmitirmos maiores quantidades de informações sobre o mundo a nossa volta. Consequentemente, nos habilitamos a realizar ações complexas, a exemplo (segundo Harari) de como evitar leões e caçar adequadamente bisões. Nos capacitamos também a transmitir grandes quantidades de informações sobre nossas relações sociais. Como resultado, os grupos tornaram-se maiores e mais coesos. Conseguimos também transmitir grandes quantidades de informação sobre coisas que não existem de fato, tais como espíritos tribais, nações e demais conceitos abstratos. Essa última habilidade (capacidade de invenção) é o que alavanca tudo o que seguiu e que nos levou onde estamos, pelo bem ou pelo mal.
Ao longo da revolução agrícola domesticamos os animais. Harari impressiona o leitor com a foto de um bezerro em uma fazenda industrial. Observa que, logo após o nascimento, “o bezerro é separado da mãe e trancado em uma jaula minúscula, não muito maior do que seu próprio corpo”. Prossegue, lembrando que o bezerro nunca sai da jaula e que não brincará com outros bezerros. Seus músculos são fracos, por isso, para nosso deleite, a carne é macia e suculenta. Só se movimentará uma vez: quando for levado ao matadouro. Para Harari, o boi em termos evolutivos, “representa uma das espécies de animal mais prósperas que já existiram (...) ao mesmo tempo, está entre os animais mais sofridos do planeta”. O sucesso dos bovinos é uma tragédia.
De acordo com Harari, matéria, energia, tempo e espaço resultaram na física. Matéria, energia e estruturas mais complexas resultaram na química. Moléculas se combinaram em organismos estruturados, o que resultou na biologia. Há 70 mil anos um desses organismos (o homo sapiens) construiu estruturas organizacionais bem elaboradas. Resulta disso a cultura e a história.
Cultura e história decorrem também da imaginação. Podemos imaginar e falar sobre coisas que não existem de fato. Construímos uma imaginação coletiva. A religião, nesse sentido, decorre de mitos religiosos compartilhados. Os Estados, de mitos nacionais comuns. Os sistemas jurídicos, assim, segundo Harari, não passam de mitos jurídicos também compartilhados. Como que se combinássemos a acreditar nos mesmos deuses, nas mesmas bandeiras e nos mesmos códigos.
Harari ilustra o argumento com a história de Armand Peugeot e sua empresa, a fábrica de automóveis francesa Peugeot. Com base no símbolo da companhia, um leão, lembra que o negócio resultou de um código jurídico, redigido por um parlamento, segundo o qual se um advogado seguisse ritos e liturgias prescritos e adequados, escrevendo todas as fórmulas jurídicas em um pedaço de papel decorado com selos, com uma assinatura, a situação estaria bem colocada.
Acreditamos em ficções, em construtos sociais e em realidades imaginadas. Essa crença nos diferencia. Corporações (cujo nome identifica a efetiva incorporação de uma ideia) e pessoas jurídicas são meras invenções. Ao argumento de Harari acrescento o fato de que na tradição do direito privado as pessoas jurídicas foram originalmente denominadas de pessoas morais. A tradição do direito privado é também uma criação conceitual (especialmente dos romanos). Exemplifico com os conceitos de pessoas, de coisa fungível, de contrato, de posse, de propriedade, de uso, de gozo, de fruição, de sucessão, de responsabilidade (objetiva e subjetiva), que só existem, efetivamente, como resultado de nossa invenção.
Criamos mitos. Harari lembra-nos que a partir de 1789 boa parte da população francesa deixou de acreditar no mito do direito divinos dos reis e passou a acreditar no mito da soberania do povo. A partir da imaginação de crenças animistas e de espíritos falantes tudo é possível, porque a imaginação não tem limites.
Criamos ordens imaginárias e desenvolvemos sistemas de escrita. Essas ordens (reveladas no direito e no estado) não eram (e nem são) neutras ou justas. Dividem-se as pessoas em grupos, dispostos em hierarquias. Níveis superiores detém privilégios e poder. Níveis inferiores sofrem discriminação e opressão. Harari exemplifica historicamente com o Código de Hamurábi (Mesopotâmia, século XVIII a. C.), que “estabelecia uma ordem hierárquica formada por homens superiores, homens comuns e escravos (...) os superiores ficavam com todas as coisas boas da vida (...) os homens comuns ficavam com o que sobrava (...) os escravos ficavam com uma surra, se reclamassem”. A declaração de independência dos Estados Unidos, em 1776, continua Harari, manteve hierarquias que, no resultado, não alteraram muito essa ordem. A reflexão vale para as ordens jurídicas que seguiram.
Harari mostra-nos fechados no que denomina de “muros da prisão”. Segundo esse instigante autor, confundimos uma ordem imaginada com uma ordem objetiva e real, ainda que criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza. Por isso, acredita-se e especula-se que os livres mercados seriam o melhor sistema econômico não porque Adam Smith assim argumentou, mas porque essas seriam as leis imutáveis da natureza.
Essas leis imutáveis não existem. Nós a inventamos. Essa ordem apenas define os nossos desejos. Segundo Harari uma situação histórica fortuita (casual) se traduz em um rígido sistema social. Um acontecimento histórico ocasional, por exemplo, resulta no controle de um grupo em relação a outro. Normatiza-se o domínio com leis discriminatórias (ainda que vagamente). Na discriminação predica a pobreza e a falta de instrução. Resultam preconceitos culturais que reforçam a situação histórica fortuita. Alguma coincidência?