O Cabeleira, de Franklyn Távora

O Cabeleira, de Franklyn Távora

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O escritor cearense Franklyn Távora (1842-1888), ligado a Tobias Barreto e à Escola do Recife, idealizou um tipo clássico de cangaceiro, o Cabeleira (título do livro). Tobias Barreto, líder da escola e inspirador dos moços que estudavam em Recife (entre eles, Graça Aranha), era um culturalista. As instituições sociais não nos são dadas pela natureza, são por nós construídas. Temos poder sobre nosso mundo e podemos transformá-lo. É esse o mote do culturalismo. A literatura é militância. Ler, também, e mais ainda. E fazer crítica, tanto, ou um pouco menos quanto.

Franklyn Távora morreu de um aneurisma. Tinha 46 anos. Morreu na pobreza, desiludido com os amigos. Vendeu sua biblioteca para donos de sebo, que então já proliferavam no Rio de Janeiro. Escritor altamente crítico era, ao mesmo tempo, um romântico, um realista e um naturalista. Comprova-nos que a literatura não conta com fronteiras exatas e bem definidas.

O Cabeleira, chamava-se José Gomes. Personagem que perambulou pelo interior do Pernambuco, injustiçado, tentando levar para os menos favorecidos uma justiça que o Estado e os poderosos se negavam a implementar. Era filho de um mameluco, um sujeito que praticava crimes horríveis. Vivia uma concepção própria de justiça, a justiça social. Ainda que não teorizasse ou expressasse com clareza seu desespero para com as desigualdades, percebe-se, em seu comportamento, um total comprometimento para com o sofrimento dos mais fracos.

Além de idealizar um anti-herói, Távora, ao longo da obra, colocou vários outros personagens de impressionante realismo. Pintou com objetividade os mandões do sertão. Há no livro um juiz que se diz executor das ordens do governador; é sua medida de justiça. Esse juiz reconhecia que condenou alguém que merecia pena mais branda, mas, ainda que juiz, quem mandava era o governador. Não poderia absolver o pobre coitado. Era juiz, e tinha juízo, obedecia ao chefe político.

No livro, Távora insurgiu-se contra a (in) justiça de sua época. Preso, o Cabeleira foi condenado à pena de morte, e em seguida executado. O juiz ordenou que o escrivão repetisse a leitura da sentença. Todos os supostos delinquentes eram obrigados a ouvir várias vezes a condenação. Era o padrão da justiça no século XIX. A execução, lê-se nesse fortíssimo livro, foi uma cena bárbara. Segundo o narrador, a execução enchia de horror a humanidade e cobria de vergonha e luto, como tantas outras, a história daquele tempo.

Para o narrador, os efeitos pedagógicos da pena eram nulos. A execução do Cabeleira não resolvia as desordens e delitos apontadas pelos acusadores e juízes. Não havia na execução qualquer medida de terror ou emenda aos malfeitores. Távora é contra a pena de morte. Em passagem lírica do livro lembra que as idades e as luzes tinham demonstrado que a pena de morte era também um crime. Não corrigia nada, e nem moralizava ninguém. A pena de morte apenas sujava os códigos, por mais que seus autores posassem de liberais e sábios. A pena de morte apenas escandalizava e envilecia as populações que a adotavam. Um modo primitivo de vingança.

Na cena da execução, gritam nas ruas: “Quem tiver seus filhos, saiba-os ensinar, veja Cabeleira, que vai a enforcar”. O narrador, ao mesmo tempo, e na passagem seguinte, avisa que “condena-se o escravo que mata o senhor, sem se atender a que, rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diário, coberto de andrajos, quase sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos, semelhante criatura é mais própria para cego instrumento de desespero, do que para o exercício da razão”. Criminologia crítica mais direta não há.

O autor insistia que a justiça que havia executado o Cabeleira não levava em conta que os crimes pelos quais o cangaceiro foi executado tinham como origem a ignorância e a pobreza. Não havia instrução para todos. À época, não se concebia com clareza as diferenças entre instrução e educação. O trabalho não era organizado. Para Távora, a sociedade não tinha em caso nenhum o direito de aplicar a pena de morte a ninguém, muito menos tem o de aplicá-la aos réus ignorantes e pobres, isto é, àqueles que cometem o delito sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade.

O autor denunciava um sistema que reproduzia a miséria, verdadeira causa do chamado comportamento marginal. O Cabeleira é uma obra genuinamente brasileira, reveladora de nossas mazelas, e de pontos recorrentes que nos cobrem de insatisfações e frustrações. Ler o Cabeleira, hoje, é um encontro com tipos comuns, ainda que literários, mas que são efetivamente reais. Só não os vê quem não discerne a vida, ou não quer enxergá-los. São pessoas que transitam pelos rincões e pelas grandes cidades. São pessoas.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 26/01/2020
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