A autobiografia, de Eric Clapton

A autobiografia, de Eric Clapton

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

É necessária uma permanente desconfiança para com autobiografias. Seus autores tornam-se personagens, mártires, projeções maiores do que efetivamente foram, exceto para seus próprios olhos. Santo Agostinho, Rousseau, Gandhi e tantos outros e outras provavelmente se excederam. Não sei.

Há autobiografias, no entanto, que sugerem ação, pelo poder que irradiam, especialmente quanto à superação de seus autores, em face das angústias e dificuldades da vida. Ilustro essa expectativa com a autobiografia de Eric Clapton, guitarrista inglês. Esclareço, antes, que se trata de uma referência da cultura midiática. Os teóricos das expressões culturais apontam a existência das culturas erudita, popular e de massa. A cultura midiática é a cultura de massa, ambiente intrínseco à ordem capitalista. Fatura-se. Muito dinheiro em jogo. Reconheça-se, no entanto, que há também talento nessa onda.

A narrativa de vida de Eric Clapton, ainda que eventualmente cheia de ficção e de invencionices, é o testemunho de uma época, e o exemplo de que se pode vencer a droga, a bebida e a falta de esperança. Um livro que vale a pena ser lido, relido, pensado e vivido. Sem nenhuma pieguice ou idiotice de autoajuda, é uma vida que me parece densa de experiências. Um livro interessantíssimo.

Ainda muito criança Clapton descobriu que sua mãe era quem supunha ser sua irmã. Um trauma nada fácil. Aos 16 anos, estudioso de artes, ganhou a primeira guitarra. Procurava imitar os negros americanos que tocavam blues. Conta que trabalhava o tempo todo tentando aprimorar a técnica. Aceito por um grupo que mais ensaiava do que tocava, dedicou-se integralmente a carreira musical. Em agosto de 1964 foi notado como guitarrista promissor em um festival de jazz, na Inglaterra. Começa a tocar com sua primeira grande banda. Nessa época, nos estúdios da Odeon, conheceu aos Beatles, sensação do momento. Começa a ser dar bem com George Harrison, amigo de toda a vida, de quem tomou a mulher, Patty Boyd. A ela, Clapton compôs Layla.

Conheceu Bob Dylan, em relação a quem confessou ter impressões ambivalentes. Clapton é franco em sua autobiografia, e não deixa de criticar artistas incensados pela cultura pop, a exemplo da banda Led Zeppelin. Lembra que sua fama ganha dimensão quando se pichou a parede de uma estação de metrô em Londres com a frase: Clapton é Deus. Com dois conhecidos músicos ingleses, com quem aliás não se dava bem, formou a primeira superbanda reconhecida por essa mesma cultura pop e comercial: Cream. Frequentou São Francisco, que então era a capital da cultura e das drogas.

Em 1969 excursionou pelos Estados Unidos, com músicos de primeira linha, com quem manteve uma outra superbanda, cujo título é expressão que traduzida para o português nos remete à excitante de ideia de uma fé cega. Clapton conta que o envolvimento com o álcool e com as drogas (especialmente com a heroína) levaram a um declínio foi angustiante, no ano de 1970. Em 1971, a convite de George Harrison, apresentou-se no famoso concerto para Bangladesh, organizado com o objetivo de se levantar recursos para a luta contra a fome naquele país. O concerto (na verdade foram dois, no mesmo dia) foi realizado em Nova Iorque. Conta que estava tão drogado nesse dia, que de nada se lembra. Comenta então um dos piores aspectos do flagelo das drogas: a total incapacidade e a impossibilidade de lembrança de momentos felizes.

Começa então uma luta que incluiu sessões de acupuntura. Namorou Yvonne Elliman, uma excelente cantora de origem irlandesa e havaiana, que interpretou Maria Madalena em Jesus Cristo Superstar, uma surpreendente ópera-rock. Com Patty Boyd, conta-nos que viveu uma incursão bêbada ao desconhecido, ao contrário do que se noticiava. Para a imprensa, era um casal romântico que vivia um permanente sonho. Em 1978 a bebedeira fazia com que shows fossem cancelados. Amigos se uniram para estimulá-lo; organizaram um concerto em Londres, que resultou em disco antológico. Em 1981, depois de muitas recaídas, permanece sóbrio a maior parte do tempo.

Conheceu Lori del Santo, uma linda modelo italiana, nascida em Verona (imaginária terra de Julieta) com quem tem um filho, Conor, que nasceu em 1986. Um desesperado telefone de Lori conta a tragédia: o menino caiu da janela de um prédio em Nova Iorque. No funeral, a dor explode. Clapton conta o desespero da avó italiana, que histericamente queria pular na sepultura. Os primeiros meses após a morte do menino consistiram em um pesadelo acordado. O tempo é lembrado com a canção Tears in Heaven, Lágrimas no Céu, que inicia com um verso melancólico. Clapton pergunta ao menino se ele o reconheceria se se encontrassem no céu.

Clapton buscou o equilíbrio da vida pessoal com um tratamento de recuperação de álcool e drogas. Criou uma fundação para o combate desses males - - alcoolismo e drogas - -, a Crossroad Foundation, que financiou com o leilão que organizou, no qual vendeu suas guitarras. Alcançou quatro milhões de dólares.

Livre da bebida e do álcool, persiste tocando e gravando. Símbolo de uma superação (que é possível, é sempre possível), Clapton nos sugere nessa autobiografia que somos bem maiores do que pensamos, que nossas forças de superação nos surpreendem, e que na compreensão de nossas limitações e erros, tem-se o portal de nossa libertação. Atravessemos o portal. Eu quero atravessar o portal. Se a promessa, ela, é sincera, pode haver sempre alguém a espera, com um sorriso, compreensão, graça.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 25/01/2020
Reeditado em 25/01/2020
Código do texto: T6849993
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