As bruxas, de Stacy Schiff

As bruxas, de Stacy Schiff

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Stacy Schiff é uma escritora norte-americana que se notabilizou por uma biografia romanceada de Cleópatra, bem como por uma biografia de Saint-Exupery (o autor do Pequeno Príncipe). Também nos deixou um relato atemorizante sobre o famoso episódio das Bruxas de Salem, que até hoje agita a reminiscência política do radicalismo, do preconceito e da violência. Os fatos foram tenebrosos. O que angustia é que, ainda que com proporções distintas, em grau e em intensidade, continue ocorrendo.

Retomo a narrativa, como esforço para incentivar o leitor para a leitura desse fascinante livro, com o desafio de que os fatos que procuro resumir sejam comparados com o enredo urdido pela escritora norte-americana. Em 1692, nos Estados Unidos, processos judiciais marcaram uma histeria coletiva, fato até então sem precedentes naquele país. Fatos de algum modo parecidos ocorrerão de novo na década de 1950, também nos Estados Unidos, com intenso movimento de perseguição a supostos comunistas, liderado por um prosaico senador, uma reminiscência das históricas “caças às bruxas”. E acontece em todos os lugares, em todas as épocas.

A locução também nos remete ao ideário medieval, de perseguição de feiticeiras, que hoje sabemos que eram mulheres que apenas destoavam de um suposto comportamento então esperado. Por que apenas mulheres eram lançadas nas fogueiras? Tais episódios, caças às bruxas, revelam a face vingativa da experiência jurídica: a sociedade também expurga seus pecados e transcende suas culpas por intermédio de sistemáticas e recorrentes farsas de ajustamento jurídico. Não são processos judiciais. São farsas.

O episódio das bruxas de Salem ocorreu nas cidades de Boston e de Salem, no atual estado de Massachusetts. Foram cerca de 200 acusados, número expressivo num contexto de uma sociedade rural e incipiente. Entre eles (ou elas, em sua grande maioria) 29 foram sentenciados culpados. Há registros de que 19 foram enforcados; em sua maioria, insista-se, mulheres. As penas capitais, enforcamento, foram executadas em ambiente histriônico e pretensamente purificador.

Tudo teria se iniciado em 1691, na casa do reverendo Samuel Parris, um dos líderes religiosos da região. Conta-se que um indígena caribenho, Tituba — que era escravo —, cuidava de duas garotas, respectivamente filha e sobrinha do pastor, com 9 e 11 anos. Tituba fazia mágicas e simulava a previsão do futuro.

O grupo aumentou com mais oito meninas, com idades de 12 a 20 anos. Os puritanos de Salem desaprovaram essa situação. As meninas passaram a demonstrar sintomas estranhos: em transe, produziam barulhos, faziam gestos incompreensíveis, gritavam. A cidade de Salem foi tomada pelo pânico. O reverendo Parris chamou um médico, que examinou as meninas, diagnosticando que estavam enfeitiçadas.

As garotas foram pressionadas a identificar quem as estava enfeitiçando. As acusações se basearam na chamada “prova espectral”; isto é, o diabo trabalharia por intermédio de interpostas pessoas, alterando seus “espectros”. A “prova espectral” é confirmação contundente da tese de Michel Foucault, para quem cada época produz suas verdades jurídicas. Tempos houve nos quais confissões somente eram admitidas na medida em que obtidas por tortura. A confissão espontânea era um mero desvio na apreensão da realidade. Na colônia de Massachusetts, condenou-se e enforcou-se com base em “prova espectral”.

Tituba foi denunciado, e com ele duas mulheres, Sarah Good (grávida, vestida em trapos, que morreu na prisão) e Sarah Osburn (também maltrapilha, impopular na cidade, onde tinha muitos inimigos). O processo foi conduzido por dois juízes locais, Jonathan Corwin e John Hathorne, que agiam mais como promotores. Todas as pessoas indesejadas da região, intuitivamente, foram alcançadas pelas forças processantes. Ótimo momento para a destruição de inimigos, na lógica perversa daquele sinistro pensador renascentista florentino, cujo nome próprio é hoje um adjetivo, indicativo da malignidade do político.

Tituba informou que foi pressionado por quatro mulheres e um homem; denunciou também Martha Corey e falou de um homem, magro e alto, que era de Boston. As denúncias se multiplicaram, enchendo as prisões de Salem e de Boston. Inclusive uma menina de cinco anos e um pastor foram presos. As sessões do julgamento teriam sido muito tumultuadas, com acusações mútuas. Os habitantes da região aproveitavam a onda de denúncias para prejudicar os desafetos.

A primeira enforcada chamava-se Sarah Bishop, dona de uma taverna. Qual a acusação? Seu “espectro” teria pairado sob o berço de uma criança, que teria sofrido e que em seguida morreu. Uma outra acusada, Rebeca Nurse, discutiu com um pastor, prevendo que este morreria bebendo o sangue da acusada; conta-se que, quando o pastor morreu, havia forte sangramento em sua boca. Fatos incompreensíveis, certamente também fomentados por uma catárquica imaginação popular.

A situação foi se acalmando com o tempo, especialmente com a vinda de um novo governador para a colônia, que passou a contar com uma outra Constituição (Charter). Muitas condenações foram revistas, e algumas famílias de vítimas foram indenizadas.

Esse parece ser o roteiro das histerias jurídicas coletivas, que a história capta nas inquisições, nas bruxas de Salem, no macarthismo e também em regimes políticos ditatoriais, a exemplo do nazismo, quando houve impressionantes e lastimáveis episódios de queima de livros em praça pública.

A condição humana, em seus aspectos mais deploráveis, também é apreendida nesse imenso diálogo teatral, que alguns chamam de processo, cuja fragilidade dos acusados é denunciada e problematizada no livro de Stacy Schiff, que retoma - - em forma de crônica - - o cotidiano desse tempo difícil, que recorrentemente nos ameaça.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 24/01/2020
Reeditado em 24/01/2020
Código do texto: T6849340
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