Hamlet, de William Shakespeare
Hamlet, de William Shakespeare
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Hamlet, o perplexo príncipe da Dinamarca, é um dos personagens mais perturbados e sediciosos da imensa galeria dos caracteres de William Shakespeare. Símbolo da indecisão, “ser ou não ser, eis a questão” e, nesse sentido, um existencialista antes dos existencialistas, Hamlet questionava o sentido da existência; afinal, o que “será mais nobre sofrer na alma? Pedradas e flechadas de um destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias”? Diante de uma peça de Shakespeare somente o espectador ou o crítico podem falhar. Essa passagem é de Carpeaux, nosso grande crítico.
Hamlet é uma tragédia centrada no tema da vingança. Pode nos provar que um espírito vingativo é tão destrutivo quanto o motivo da vingança. Shakespeare nos lembra a presença do mal no universo humano e, ao mesmo tempo, explora nossa reação para com esse mal congênito. Melancolia e insanidade são mecanismos humanos de enfrentamento do mal.
O enredo dessa tragédia é labiríntico. Cláudio teria assassinado seu irmão, que era o Rei (o pai de Hamlet, com o mesmo nome), casando-se com a Rainha Gertrudes (mãe de Hamlet). Um fantasma, que Hamlet acreditava ser seu pai (“sou o espírito de teu pai”), contou-lhe o que teria acontecido, e como morreu pelas mãos de Cláudio, pedindo vingança. Assim, obcecado por uma desforra ditada por um espectro, na forma imaginária do pai assassinado, Hamlet fingiu-se de alucinado, dizendo-se “não estou louco de verdade, estou louco por astúcia”; o fingimento da loucura fazia parte do plano para vingar a morte do pai. A vingança era o único pensamento que persistia em sua mente.
Hamlet não estava em paz. Acreditava ser capaz de viver recluso numa casca de noz, percebendo-se como o rei do espaço infinito, se não tivesse maus sonhos. E uma alma em desordem, dita o bom senso, refém do sofrimento que a destrói, e do qual paradoxalmente também se alimenta, é uma alma triste, melancólica, que vê a vida como uma “enorme prisão, cheia de células, solitárias e masmorras”. A natureza humana é vista também com melancolia. Para Hamlet, se as pessoas fossem tratadas como merecemos, todas mereceríamos o chicote. Pessimismo maior não há.
Hamlet obteve as provas de que necessitava quando, a seu pedido, um grupo teatral representou uma peça, na qual o Rei foi assassinado, exatamente como Cláudio teria matado o pai de Hamlet. É o teatro dentro do teatro. É o artifício utilizado por Hamlet para alcançar a verdade. Como Hamlet previa, Cláudio, assustado e titubeante, deixou o teatro. Era a prova de que Hamlet precisava. Comprovou a fala do fantasma que denunciou que “a serpente que tirou a vida de teu pai agora usa a nossa coroa”.
Questionado pela mãe (que queria entender o que ocorrera com Cláudio no teatro) em conversa no quarto da Rainha, Hamlet assassinou Polônio, conselheiro do Rei, que ouvia a conversa atrás de uma cortina. Pensava que estava ferindo Cláudio. Polônio era pai de Ofélia (que Hamlet supostamente amava), e de seu amigo Laertes. Ofélia se suicidou, tentou-se negar-lhe uma sepultura. Na parte final, Hamlet mata Cláudio, fechando a vingança, morrendo logo em seguida, ferido por uma espada envenenada. A partir de então, “o resto é silêncio”. Isto é, “o silêncio habita o texto”.
Várias são as leituras que Hamlet sugere. Do ponto de vista psicanalítico podermos ter um exemplo renascentista do complexo de Édipo; talvez Hamlet invejava o tio assassino (Cláudio), justamente porque era o que gostaria de ter feito com o pai, com o objetivo de possuir narcisisticamente a mãe (Gertrudes). Tem-se a impressão que Hamlet vivia uma neurose, fixado na mãe, desejando o lugar do tio, que fora o lugar do pai. Hamlet, assim, não aceitou o casamento de Gertrudes. Para Freud, Hamlet era um caso patológico, parecido com vários de seus pacientes. Hamlet, ao final da peça, vê descer sobre si o castigo, “sofrendo o mesmo destino do pai, ao ser envenenado pelo mesmo rival”.
Do ponto de vista da política, Hamlet ilustra o argumento daquele transtornado político florentino, para quem é melhor ser temido do que amado. Hamlet insistia que precisava ser cruel para ser justo. Todo príncipe deseja ser considerado piedoso, e não cruel. Mas não pode usar mal esta piedade. O príncipe não deve importar-se com a fama de cruel para manter os súditos unidos e confiantes. A confiança exagerada pode tornar o príncipe incauto, e a desconfiança excessiva pode torná-lo intolerante. As amizades que se adquirem com dinheiro e não por grandeza ou nobreza da alma, são compradas; e com elas não se pode contar no momento oportuno. É que, para Maquiavel, (...) e os homens têm menos respeito aos que se fazem amar do que aos que se fazem temidos, porque o amor é conservado por um vínculo de obrigação, o qual se rompe por serem homens maldosos, em todo o momento que quiserem, e temor é alimentado pelo medo do castigo que nunca te abandona”. Mais fácil o medo do que o afeto.
Do ponto de vista filosófico, Hamlet é um relativista, um personagem absolutamente incrédulo, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. É também um pessimista, temente das “dores do coração e das mil mazelas naturais a que a carne é sujeita”. Prisioneiro do destino, Hamlet é um fatalista, “só te acontece o que merece”.
O pessimismo, a indecisão, o fatalismo, o relativismo e a vingança podem ser indícios de quem vive sem amor, o qual não se revela porque não há vida, ou porque dele se fez descrente. Essa pode ser uma das lições de Hamlet: o fantasma das desilusões que acompanha a vida. Foi um personagem desse perturbador enredo que anunciou que “onde a alegria mais canta e a dor mais deplora, num instante a dor canta e a alegria chora”. É que todos, como Hamlet, persistimos com uma misteriosa questão não resolvida, afinal, é “a vida que faz o amor, ou este que faz a vida?”.