Antígona, de Sófocles

Antígona, de Sófocles

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O universo feminino grego da época clássica (especialmente século V a. C.) pode também ser intuído em Antígona, conhecida peça de Sófocles, que os juristas adoram utilizar como certidão de nascimento do direito natural. Sófocles, o dramaturgo, nasceu em Colonos, perto de Atenas. Viveu em Atenas na época de Péricles, no século V a.C., momento de muita riqueza e de esplendor. Sófocles ambientou suas peças em torno de Édipo, o herói que matou o pai e se casou com a própria mãe. Antígona era filha incestuosa de Édipo, nascida do ventre da infeliz Jocasta. O drama de Édipo ilustrou um dos mais importantes argumentos da tradição freudiana.

O enredo da peça é assustador. Creonte, que era rei na cidade de Tebas, havia proibido que se sepultasse Polinices. A desobediência à ordem seria penalizada com a pena de morte. Polinices abandonou o exército no campo de batalha, conduta que os antigos viam como ultrajante. A penalidade consista na perda da possibilidade de sepultamento. Para os antigos a pena era cruel. Acredita-se que a negação da sepultura resultaria em uma alma apenada que vagaria pela eternidade.

Antígona, irmã de Policines resolveu desafiar a ordem ultrajante. Insistiu, e realizou os ritos fúnebres do irmão. Surpreendida, foi presa e conduzida à presença de Creonte, que estava enfurecido. Antígona justificou-se, dizendo que seguiu uma lei divina, superior à lei humana. Creonte não aceitou as justificativas e condenou Antígona a ser sepultada viva em uma caverna subterrânea.

Antígona desafiou a concepção positivista de norma, invocando regras transcendentais como justificativa de seu desafio. Sua ação deve ser avaliada num contexto histórico específico, onde à mulher não era autorizado o uso da lei. As mulheres eram desprovidas de direitos, viviam subjugadas ao poder masculino. Ismênia, que era irmã de Antígona, realisticamente advertiu a heroína que a condição feminina iria diminuí-las. Lembrou que não poderiam se esquecer que eram mulheres, e que viviam em uma sociedade que lhes negava direitos. Argumentava que não poderiam lutar contra os homens. Reconhecia que uma situação de absoluta submissão as condenava.

Nas peças gregas havia o “coro”, um conjunto de personagens que expressava a opinião pública. Nessa peça, o coro admitia que havia desigualdades, mas que essas desigualdades não diminuíam as mulheres. Em geral, os comentadores tomam o partido de Antígona. A heroína representa uma voz feminina que enfrentou o radicalismo de um rei cruel. O rei insistia na legalidade de sua posição, lembrando que o irmão de Antígona havia traído a cidade quando desertou, o que significava que lutou ao lado do inimigo, contra as forças da cidade, que jurou defender. Creonte insistia na aplicação da lei. Antígona deveria ser punida. Determinou que ela fosse conduzida a um local distante, onde seria lacrada em um túmulo subterrâneo, revestido de pedra, tendo diante de si alimento suficiente para que a cidade não seja maculada pelo sacrilégio.

Antígona sofria também penalidades indiretas que a privavam de existência plena de mulher, e afirmou: “E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. (...) Deuses imortais, a qual de vossas leis eu devo obedecer?”

Acredito que ao tratar de uma mulher desafiadora das leis da cidade, Sófocles problematizava o papel feminino. Os contemporâneos nos enamoramos da heroína. Os antigos a criticavam porque ela ousou desafiar as leis da cidade. O fato de que o irmão de Antígona era um traidor justificava o argumento daqueles que defendiam a correta aplicação da lei.

Essa peça é fonte primária para o conhecimento do direito penal grego. Indica-nos a vingança pública (em substituição à vingança privada), a concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa, a aplicação do princípio da reserva legal, a morte não identificada como razão extintiva de punibilidade, o clamor social contra decisão injusta. É um historiador hoje fora de moda, Fustel de Coulanges, em um livro delicioso, “A Cidade Antiga”, quem nos explica a natureza da pena infligida ao irmão de Antígona: Segundo Coulanges, nas cidades antigas a lei punia os grandes culpados com um castigo considerado terrível: a privação de sepultura. A punição recaia sobre a alma do delinquente, o que significava um suplício quase eterno.

Antígona é assunto recorrente em estudos de Filosofia do Direito para ilustrar as diferenças entre direito natural e do direito positivo. Para o direito natural a justiça é transcendente e atemporal. O critério do justo é seu referencial de aplicação. Teria a mesma eficácia em todos os lugares. Suas normas são as mesmas que regem o universo. É imutável no tempo. É revelado pela razão ou pela ordem divina. Estabelece aquilo que é bom. É ditado pela razão. É informal. É voluntarioso. É centrado no idealismo e na metafísica. Os defensores do direito natural insistem que seu conteúdo é universal. Antígona é quem melhor representa essa concepção de direito e de justiça.

Perguntada porque desafiou o rei, Antígona responde em uma das passagens mais dramáticas de nossa tradição cultural. Desrespeitava a lei porque não fora Júpiter quem a promulgou. O decreto de Creonte não fora estabelecido pelas divindades subterrâneas da justiça. As leis que cumpria, não foram escritas pelos mortais, nunca foram escritas, mas eram irrevogáveis. Não foram escritas ontem, são eternas.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 22/01/2020
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