As Vespas, de Aristófanes
As Vespas, de Aristófanes
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
“As Vespas” é uma comédia atribuída a Aristófanes. Aristófanes é considerado o grande comediante do século de Péricles, época de esplendor de Atenas. Aristófanes teria falecido por volta de 338 a. C. Escrevia comédias estruturadas em quatro partes; em uma delas chamava a atenção dos espectadores para a realidade e para os problemas da época. Em “As Vespas” Aristófanes chamou a atenção dos atenienses para os problemas do judiciário. Trata-se de uma inteligente crítica aos tribunais gregos do século V a.C., e que de alguma forma transcende em seu tempo de origem.
Ambientando o leitor, quanto aos tribunais atenienses, explico que réu e acusador se reuniam em local determinado, levando parentes e amigos, que atestariam as boas intenções das partes. A solidariedade jurídica elevaria o número de votos, garantindo a vitória de um dos litigantes. Na época clássica, tribunais eram centro de encontros para desempate de disputas religiosas e familiares, sempre sob a tutela do Estado, o que indica romanticamente algum espírito democrático que animou a organização das instituições atenienses, como preocupação de se assegurar harmonicamente a soberania e os direitos do indivíduo. Da classe dominante, é claro.
Entre as várias cortes, havia o Areópago, criada por Sólon, a mais antiga, que, de acordo com a lenda, foi criada pela deusa Atena por ocasião do julgamento de Orestes, que vingou o pai, assassinando a mãe, que o tinha traído. Também havia o Tribunal dos Éfetas, criado por Drácon, dividido em câmaras especiais.
O mais importante era o Tribunal dos Heliastas, criticado na comédia de Aristófanes. Anualmente sorteavam-se seis mil jurados entre os cidadãos inscritos, maiores de 30 anos. Os sorteados eram designados juízes e prestavam juramento. Eram divididos em dez seções de quinhentos membros: os restantes mil jurados eram suplentes. Tinham competência para acompanhar e julgar as causas em geral, de direito público e privado, e muitos de seus membros eram pessoas idosas, de pequena e média condição, que eram pagos para o desempenho da função. Como o juiz recebia três óbulos por dia para participar das sessões do tribunal, a judicatura transformou-se no principal meio de vida para muitos cidadãos atenienses.
Nessa encantadora peça de Aristófanes, tem-se um debate entre pai e filho. O pai adora o tribunal, porque é magistrado, o que lhe traz muitas vantagens. O filho acha que o tribunal é falho e desnecessário, porque é mero instrumento dos governantes. O filho achava que a doença do velho (seu nome é Filoclêon) era a paixão pelos tribunais. Ele ficava desesperado se não conseguisse ocupar o primeiro banco dos juízes. Logo depois do jantar pedia as sandálias, corria para o tribunal em plena noite e lá adormecia. Com receio de não ter a pedrinha para o voto, ele tinha um canteiro de pedrinhas no jardim de sua casa.
Fica claro na peça que a paixão de Filclêon era também condenar os réus. Afirmava para os amigos que o oráculo de Delfos havia previsto que morreria no momento em que um acusado escapasse de suas mãos. Era um juiz que apenas condenava. O filho queria prendê-lo em casa, justamente porque sabia da patologia acusatória que atacava o pai.
Como estava preso em casa, os demais juízes, vestidos de vespas (que têm embaixo da barriga um ferrão penetrante e picam todo mundo com ele) vão até a casa de Filoclêon, para convocá-lo para mais uma sessão do tribunal. Na vestimenta dos juízes a justificação do título da peça e da imagem que Aristófanes fazia dos juízes. Aristófanes era um destemido.
No meio da discussão Filoclêon insiste que tem grande desejo de ir ao tribunal para dar seu voto. Ainda pede que, se alguma desgraça ocorresse, que fosse enterrado na sala onde se julgava. As Vespas-Juízes não conseguem retirá-lo de casa. Enviam meninos para tentar convencer o filho do atrapalhado juiz. Avisam que um inimigo do governo será julgado, e que deverá ser condenado à morte. Os juízes são vingativos. Ameaçam o filho de Filoclêon, dizendo que um promotor irá denunciá-lo. Interessante na tradução, o uso da expressão “promotor”. Em Atenas, não havia Ministério Público. Qualquer um poderia denunciar. Daí a proliferação de acusadores e denunciantes, que eram chamados de sicofantas. Tentavam extorquir os s ricos e a fúria acusadora só era refreada pelo temor das multas, decorrentes das denúncias infundadas.
Filoclêon insistia na sua importância e argumentava que não havia criatura mais feliz e afortunada do que um juiz cuja vida era gostosa e que era um animal temível, principalmente na velhice. O filho, no entanto, argumentava que o pai não tinha poder nenhum, que vivia das sobras dos advogados nas grandes negociatas. Pai e filho chegaram a um acordo. O pai ficaria em casa e julgaria os escravos da família. Faria tudo como se estivesse no tribunal. Se uma escrava abrisse a porta do depósito sem que o pai visse, aplicaria uma simples multa, exatamente como faria no tribunal.
Combinaram também que haveria advogados e que o juiz-caseiro os respeitaria. O advogado era importante no mundo grego. Os litigantes usavam a palavra e aqueles que não confiavam em seus talentos oratórios valiam-se da redação de profissionais (logógrafos) que preparavam os discursos. Os logógrafos recebiam por suas peças. Havia também o socorro da redação de amigos. Réu e autor podiam pedir ao tribunal que os ajudassem na escolha de amigos com mais facilidade de expressão. A autorização era raramente recusada, exigindo-se apenas, no caso do advogado amigo, que ele não cobrasse pelos serviços. Os advogados não cobravam pelo serviço. Mas cobravam pela honra de não terem aceito o pagamento. Por isso que os recebimentos de um advogado são chamados de honorários.
Filoclêon julgou um cachorro que foi acusado de roubar um pedaço de queijo na sala. O cachorro foi absolvido. O juiz não acreditou que não condenou. Lamentou e perguntou como suportaria a ideia de ter absolvido um acusado. Aristófanes satirizou os tribunais de Atenas, imaginando a figura de um velho que fazia as vezes de juiz e que, trancado por seu filho, porque chamado a participar do tribunal pelos outros juízes, simbolicamente equiparados às vespas.
A esse juiz embusteiro faltava o que de mais importante deve haver em um magistrado: o amor atento à miséria humana, e a preocupação pelas vidas corroídas pela desgraça e pela paixão.