Édipo-Rei, de Sófocles
Édipo-Rei, de Sófocles
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Somos uma insignificante peça do destino ou controlamos nossos desígnios e nossa história? Somos responsáveis por nossas ações, mesmo quando não sabemos como e por que agimos? O que conta na avaliação de um criminoso, o livre-arbítrio ou o determinismo? O incesto, mesmo que inconsciente, nos torna perpetuamente criminosos e odiosos? Será que, de fato, o concreto é passageiro e os problemas abstratos é que são eternos? São essas algumas questões-chave colocadas na peça Édipo-Rei, de Sófocles, representada desde o século V a. C.
O autor é um festejado dramaturgo grego, criador de célebres tragédias, vencedor de vários concursos. São tragédias centradas na figura de Édipo, cuja horrenda estória inspirou, entre outros, a Sigmund Freud na descrição dos arquétipos dos filhos obcecados com as mães. É o tema do complexo de Édipo, aquele que assassinou o pai e casou-se com a própria mãe. A narrativa também sustentou o argumento de Aristóteles, relativo à natureza das tragédias, textos encenados que levam ao limite a aflição humana, propiciando catarse e depuração de nossos sofrimentos. Para Aristóteles, o enredo de Édipo Rei ilustra de modo sublime a fórmula de composição desse difícil gênero literário. É um texto central na nossa tradição cultural.
A narrativa de Édipo sugere nossa impotência em face do destino, ao qual estaríamos invariavelmente atrelados. A hipótese derruba o livre-arbítrio, tem implicações penais, do ponto de vista da responsabilização do criminoso. Na medida em que aceitamos que somos instrumentos do destino, expiamos todas as nossas culpas, pelo que fizemos, e pelo que cogitamos fazer. Tudo é justificado. Não temos culpa de nada. Quando negamos o destino, assumimos nossas responsabilidades e assumimos o roteiro de nossas vidas: prestamos contas a nós mesmos; aqueles que negamos o destino somos protagonistas de nossos itinerários. Esse dilema pode ser problematizado quando perguntamos se podemos julgar e culpar Édipo pelo assassinato do pai (parricídio) e pelo casamento com a mãe, com quem teve filhos e filhas, entre elas Antígona (incesto).
Na imaginária Tebas, o rei, Laio, e a rainha, Jocasta, na espera de um herdeiro, perguntaram aos oráculos sobre o futuro da criança. Amaldiçoado por juras de infelicidades presentes, passadas e futuras, feitas pelo rei de Corinto, a quem Laio havia desonrado, o casal foi surpreendido com a notícia de que a criança mataria o pai e se casaria com a própria mãe. É que Laio havia provocado a ira de Lábdaco, rei de Corinto, pai de Crisipo, com quem se relacionara intimamente. Crisipo se suicidou, e Lábdaco culpou Laio pela morte prematura de seu filho. Gritou tão alto que as maiores árvores da terra tremeram. E deixou juras de maldição a todos os descendentes de Laio.
Horrorizados com a previsão do oráculo, de que o filho mataria o pai e se casaria com a própria mãe, Laio e Jocasta, assim que a criança nasceu, prenderam o menino numa árvore, na expectativa de que a morte seria imediata. Um mercador encontrou a criança (Édipo, o nome significa pés-machucados), levando-a para Corinto. O rei e a rainha de Corinto, que haviam perdido o filho, como resultado de uma afronta de Laio, adotaram Édipo, que foi criado na corte, com todas as honras de um príncipe herdeiro, favorito do rei. Não sabiam que a criança era descendente de Laio e Jocasta. Na idade adulta, sonhos revelam a Édipo que o parricídio e o incesto iriam marcá-lo. Certo de que era filho dos reis de Corinto, a quem ardentemente amava e respeitava, e lutando para evitar que a previsão se cumprisse, Édipo deixou a cidade.
No caminho, Édipo enfrentou o chefe de uma caravana, em discussão de estrada, matando-o. Sem saber, assassinava a Laio, seu pai, dando início ao cumprimento da sórdida profecia. Chegando a Tebas, e também sem nada saber de suas origens, encontrou nas portas da cidade um enorme monstro, a esfinge, que ameaçava de morte a quem não decifrasse suas perguntas enigmáticas. Decifra-me ou devoro-te, era o lema desse estranho animal mitológico. Enquanto seus enigmas não fossem decifrados, a cidade estava condenada a sofrer.
Desafiado a adivinhar quem pela manhã andava com quatro pernas, com o sol a pino andava com duas e no fim do dia com três, Édipo soberbamente explicou que se tratava do homem: engatinhamos quando crianças, andamos eretos quando adultos, na velhice nos apoiamos numa bengala. Humilhada com a inteligência do destemido rapaz, a esfinge se jogou do alto de um penhasco. O salvador da cidade, Édipo, recebeu como recompensa a mão da rainha, Jocasta, a quem imediatamente desposou. Cumpriu-se a profecia. Na lógica de Sófocles, somos impotentes contra o destino.
Passados vários anos, uma peste se abateu sobre a cidade de Tebas. Os oráculos explicaram que as mortes e os sofrimentos cessariam quando se descobrisse o assassino do rei, morto numa estrada, por um forasteiro. Édipo imediatamente ordenou que se investigassem os fatos, prometendo que castigaria o homicida, implacavelmente. Um adivinho, Tirésias, conduziu as investigações, que levaram ao mercador que salvara a criança da árvore.
Jocasta se recusava a aceitar o que ocorrera, rogando que Édipo não levasse em conta as revelações. No entanto, os pormenores da narrativa do velho mercador faziam sentido. A verdade se revelou. Jocasta se suicidou. Édipo furou os olhos, em desespero, para nunca mais ver as desgraças do mundo, passando a vagar com sua filha Antígona. Ao morrer, abriu-se uma fenda na terra, e o herói trágico caiu no bosque das Eumênides, onde são condenados à eternidade trágica todos quantos foram infelizes em vida.
Do ponto de vista da narrativa da tragédia, Édipo foi instrumento do destino, sobre o qual não tinha controle. Foi enganado pela sorte, porque ao deixar Corinto fez o que pode para evitar o trágico desate que o esperava. Esse ponto de vista, que se justifica por seus próprios fundamentos, ilustra que o limite de nossa responsabilidade é a informação que detemos, a partir da qual tomamos nossas decisões. O problema do destino e da negação do livre-arbítrio pode ser falso. Com a tradição da filosofia existencialista, podemos admitir que “não temos desculpas nem explicações para o que fazemos, e mesmo assim, devemos fundar nossa existência e nossas relações sobre algo sólido, pois, do contrário, não conseguimos sobreviver”.
Não é o destino que nos martiriza e que dirige nossas vidas. O destino pode ser uma justificativa preguiçosa para que não assumamos nossas responsabilidades. O que ameaça nossas escolhas são as informações que não temos, as indagações que desconhecemos, as perguntas equivocadas que fazemos e talvez as crenças preconceituosas que mantemos.