Verdade Tropical, de Caetano Veloso

Verdade Tropical, de Caetano Veloso

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em seu delicioso livro de memórias (Verdade Tropical) Caetano Veloso nos conta como definiu a letra da não menos deliciosa canção “Terra”. Quando preso na década de 60, narra Caetano, Dedé (que então era sua esposa) levou-lhe na cadeia um exemplar da Revista Manchete. Na capa da revista as primeiras fotografias de nosso planeta, tiradas de fora da atmosfera. Nessa parte encantadora do livro, Caetano explica todo o sensualismo que envolve a ideia dessa música, o que nos remete também para as aporias e tragédias sensuais que ocorrem no ambiente prisional.

A violência na prisão e a recriminação são exemplos da sociedade disciplinar em crise. É o que pensamos quando lemos passagem emblemática de Foucault, para quem não há poder sem recusa e também não há poder sem revolta em potencial. A arte é forma de rejeição e de revolta. Subverte e desafia o objetivo do dono do poder. Paradoxalmente, é em tempos de censura que a arte transcende a si mesma, deixando de ser a enfadonha arte pela arte. A arte é rebeldia.

Nelson Motta, também em seu agradável livro de memórias (Noites Tropicais) reuniu vários exemplos de insurgência de artistas, que resultaram em criações de incomparável lirismo e beleza. Motta conta-nos a reação de Chico Buarque, hostilizado pela censura, isto é, “amadurecido no sofrimento, ele reagia ao sufoco e à repressão explodindo de criatividade, usando a linguagem como arma e arte, como truque e verdade ao mesmo tempo”.

Quando Chico cantava o refrão “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” fazia uma clara alusão a um poderoso cuja filha havia declarado que gostava de suas músicas, ainda de acordo com Motta (cujo avó foi ministro do STF, justamente quem lhe salvou de uma prisão por razões de censura, em 1969). O avô de Nelson Motta era Cândido Motta Filho, ministro do Supremo, que foi também um vigoroso crítico literário. O “cálice” que Chico pedia que dele fosse afastado era uma referência ao “cale-se” dos anos de chumbo. Foi na resistência artística que brasileiros como Caetano e Chico, e tantos outros, comprovaram que a arte não se curvaria para as tesouras.

A censura é recorrente na política. Roberto Darton, historiador Antigo Regime francês, registrou que o gênero literário que mais provocava os censores antigos eram os roman à clef. Nesses, os personagens da vida real são retratados fielmente por intermédio de personagens fictícios. Os nomes dos personagens indicavam claramente de quem se tratava. Entre nós, Lima Barreto notabilizou-se por essa forma de crítica, especialmente no romance Os Bruzundangas, uma reprodução satírica e fiel do Brasil do início da República.

A censura conta com o registro e o apoio de um filósofo grego. Trata-se do pensador-herói da cultura cujas ideias municiam os projetos dos inimigos das sociedades abertas, de acordo com a denúncia do insuspeito Karl Popper. Em um de seus diálogos (As Leis) Platão questionou por intermédio de um interlocutor ateniense se os poetas seriam capazes de discernir o que é bom e o que não é. Nesse texto do cânon platônico, lê-se que um poeta não poderia compor nada que ultrapassasse os limites daquilo que o Estado tivesse como legal e correto, belo e bom. E, ainda, nessa utópica república havia juízes selecionados para legislarem em matéria de música, bem como para supervisionarem a educação.

Eram julgadores e fazedores de leis. Na impressão de um célebre teórico das relações entre direito e arte, “conscientes do temível poder da ficção, os legistas querem manter os poetas à distância para preservar a integridade do direito e da justiça”. O problema é que o direito e a justiça são definidos de acordo com os donos do poder, mesmo em ambientes pretensamente democráticos, ainda que tenhamos exceções.

A literatura mais recente oferece muitos exemplos dessa catástrofe. Winston Smith, personagem central de 1984, de George Orwell, era funcionário do Ministério da Verdade, cuja função era falsificar a história. Bernard Marx, personagem central de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, agonizou com a manipulação psicológica de uma sociedade também distópica, pautada pelo controle da opinião.

Paradoxalmente, Sócrates, o maior expositor da galeria dos personagens de Platão, foi executado, depois de um tumultuoso julgamento, menos pela cicuta, o veneno que o obrigaram a tomar. O que matou Sócrates não foi o veneno, foi a inveja.

Na França revolucionária, o libertino Marquês de Sade foi perseguido e censurado por todos os partidos e tendências, isto é, por girondinos, jacobinos, realistas e bonapartistas. A lenda conta que terminou seus dias escrevendo com sangue e fezes nas paredes das masmorras. Afinal, que moral tolera esse diabólico marquês escritor, para quem a dor nos afeta bem mais do que o prazer, pelo que “não é de duvidar que os choques resultantes em nós dessa sensação produzida sobre os outros [dor], sendo essencialmente uma vibração mais vigorosa (...) vão colocar em circulação mais violenta os espíritos animais”.

De igual modo, nas prisões francesas do início do século XIX conviviam presos que lá estavam encarcerados porque eram inimigos de Napoleão, com presos que lá estavam cativos porque eram amigos de Napoleão. Não dá para entender.

Deve haver uma chave interpretativa para a tensão existente para o tema da liberdade de expressão, que só existe plenamente quando os meios de divulgação sejam desobstruídos de qualquer controle. Impossível, talvez. Como consequência, confunde-se opinião pública com opinião publicada.

Foi numa prisão que Caetano Veloso poeticamente intuiu que a terra é para o pé firmeza e para a mão carícia, e outros astros lhe são guias. Essa terra, que, por mais distante, o errante navegante jamais esqueceria. Caetano permanece, provando-nos que a arte é longa, e que a vida é breve.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 22/01/2020
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