A busca da língua perfeita, de Umberto Eco
A busca da língua perfeita, de Umberto Eco
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Umberto Eco, em instigante livro, “A busca da língua perfeita”, conta-nos que há línguas históricas ou místicas, como o hebraico e o egípcio; línguas históricas evoluídas, como o grego moderno, o chinês e o árabe; línguas oníricas, como as línguas dos alienados ou dos que passam por transes; línguas romanescas ou poéticas, a exemplo da novilíngua de George Orwell; línguas de bricolagem, como a pidgin caribenha, jamaicana ou haitiana (creolle); línguas veiculares, a exemplo do francês no século XIX e do inglês no século XX e no mundo contemporâneo; a par de línguas profissionais, como as linguagens da química, da álgebra e da lógica.
Eu acrescentaria línguas artificiais ou planejadas, exemplificando com o esperanto e com a volapuque. Esta última – volapuque - fora concebida em fins do século XIX por Johan Martin Schleyer, padre alemão que pregou na cidade de Baden. A língua universal que imaginou decorria de suposto sonho que teve, e no qual a vontade divina lhe fora revelada. O projeto pouco prosperou. Mas o registro do curioso sonho ficou. Tudo muito freudiano.
O esperanto, por outro lado, é língua planejada de ampla divulgação. Fixado em 1887 por Ludwik Zamenhof, polonês que vivia em área de ocupação russa, o esperanto surgia como proposta de língua franca internacional. Trata-se de língua de estrutura muito simples, marcada pela ordem sujeito-verbo-objeto, e pela sequência adjetivo-substantivo. Com forte influência do vocabulário indo-europeu ocidental o esperanto é idioma de feição aglutinante, no qual não se constatam gêneros gramaticais, identificadores de gênero. Simbolizado por uma estrela de cinco pontas, que identifica os cinco continentes, o esperanto substancializaria um projeto de enfrentamento do monopólio linguístico que resulta do imperialismo cultural.
O uso do grego na orla do Mediterrâneo dos séculos III e II a.C., a fala do latim ao longo do domínio do Império Romano, a presença do francês como língua de cultura e da diplomacia no século XIX, bem como o uso do inglês em tempos mais recentes, correspondem – no plano linguístico – ao domínio político, econômico e militar dos falantes nativos de Estados dominantes. Em qualquer foro internacional, não há dúvidas, prepondera o falante nativo da língua designada como oficial, por razões que o próprio bom senso nos indica.
A relação entre língua e política nos remete ao Antigo Testamento, especialmente na planície de Shinear onde, logo após o dilúvio, pontificava a cidade de Babel, capital da Babilônia. Ao que consta, em linguagem metafórica - nem bem havia secado o último poço de água do dilúvio - ainda quando todos os povos do mundo falavam uma mesma língua, que se viveu um frenesi de construção; o soberano local ousou construir um zigurate imenso, um pináculo que alcançaria os céus. No topo da arrogante construção habitaria o deus Marduk, com quem os babilônios substituiriam Jeová, da tradição de Noé.
A narrativa bíblica (Gênesis,11) dá-nos conta da tentativa de se construir uma torre que tocaria os portões do céu. Esperava-se também que nenhum temido dilúvio submergiria a torre que se construiria. E porque o Criador perdeu a paciência com os trabalhadores da torre, que usavam uma mesma língua para desafiar ao poder de Deus é que, num dia nublado, relata-nos ainda o Gênesis, as pessoas deixaram de se entender.
E se o Criador em sua onipotência poderia derrubar a torre que se fazia, em sua infinita bondade poupou os homens da dor física, marcando-os, no entanto, com o sofrimento da incompreensão linguística. É no desate da metáfora de Babel que os homens descobrem que não falam o mesmo idioma. Toda a narrativa é válida na desconstrução de um ingênuo sonho de concepção de uma cultura universal, porque quimérica também a intuição de um idioma geral.
Não há esperanto cultural e também não há língua universal perfeita. E também não há uma língua planejada realmente triunfante, ainda que Umberto Eco nos provoque com a pansemiótica cabalística, com os efeitos colaterais da confusão linguística dos tempos adâmicos, com a combinatória cósmica da língua-mãe, com Abulafia e o intelecto ativo da gramática universal de Dante, com a utopia universalista de Postel, com a hipótese da língua mágica dos irmãos rosa-cruzes, com a tese da poligrafia, e com as línguas filosóficas de Bacon, Comênio, Descartes, Mersene, Jorge Dalgarno, Johm Wilkins, Leibnitz e dos enciclopedistas, maiores e menores. Tudo isto parece Jorge Luís Borges...
Do mesmo modo que reconhecemos que as línguas são distintas, e que não há uma língua universal, precisamos reconhecer que as culturas são distintas, e que nosso nível de compreensão precisa ser adaptado. É um tema central na antropologia cultural. E mesmo que tentemos impor uma língua, haverá uma adaptação, que pode alterá-la substancialmente. Toda imposição cultural resulta em forte reação que se revela com adaptações e alterações.
Ilustro esse argumento com a curiosa metáfora dos antropólogos ingleses que constataram que os nativos de uma determinada ilha da Polinésia tinham o costume de resolver seus problemas na violência e na tortura. Os antropólogos convenceram os nativos que melhor fariam se compusessem seus desentendimentos valendo-se do jogo do cricket. Os nativos aprenderam o curioso e sofisticado esporte inglês. Alguns anos depois, quando retornaram à região, os ingleses, espantados, constataram que os nativos resolviam suas disputas com o jogo do cricket. No entanto, as regras estavam muito mudadas. Uma bola mal jogada era penalizada com uma cabeça cortada...