Descobri que estava morto, de J. P. Cuenca
Descobri que estava morto, de J. P. Cuenca
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Autoficção é um gênero literário (relativamente novo) no qual o autor condensa relatos autobiográficos com relatos ficcionais. A fronteira entre fato e ficção é imperceptível. O autor livra-se do compromisso para com alguma verossimilhança, como ocorre nas autobiografias. Ao mesmo tempo, refere-se com segurança a fatos que viveu, que leu, que ouviu e que também imagina. Não há limites entre verdade e invenção, substantivo leve que qualificaria, literariamente, uma mentira. E se o poeta é um fingidor (finge tanto, que finge a dor que deveras sente, Fernando Pessoa) o romancista, nessa linha, é um mentiroso. Isto é, mente tanto, que mente a verdade, que deveras vive.
Críticos literários podem intuir que essa forma de narrativa, a autoficção, assemelha-se, de algum modo, às narrativas que se constroem em redes sociais. Sabe-se que há perfis colocados no ar que são absolutamente destoantes da realidade de quem os criou. Na tradição literária clássica tem-se o “bovarismo”. A expressão vem de uma personagem de Gustave Flaubert, Madame Bovary, cujo mundo que percebia não era o mundo da vida real. Escapismo absoluto.
Na literatura brasileira há duas grandes obras que transitam nesse delicioso gênero de autoficção. “O Filho Eterno”, de Cristõvão Tezza e “O Diário da Queda”, de Michel Laub. Tezza, um escritor radicado em Curitiba, nos conta uma emocionante e perturbadora história de uma criança com síndrome de Down. Viveu o drama. Laub, de Porto Alegre, mas radicado em São, especula em torno da experiência da migração judaica. Locados respectivamente em Curitiba e em Porto Alegre, onde os autores viveram, são dois romances que desafiam o leitor. Não se sabe, exatamente, onde termina o depoimento e onde inicia-se o relato ficcional. São livros encantadores.
Acrescenta-se a essa tendência “Descobri que estava morto”, de J. P. Cuenca. O ponto de partida é um fato real que ocorreu na vida do autor. Conta-nos Cuenca que por causa de uma discussão que teve com um vizinho descobriu que, oficialmente, estava morto. Quer dizer, alguém, de posse de sua certidão de nascimento, morreu, em circunstâncias pouco esclarecidas, na Rua da Relação, na Lapa, região central da cidade do Rio de Janeiro. A morte ocorreu em 14 de julho de 2008. Nesse mesmo dia, circunstancialmente, o autor encontrava-se em Roma, lançando romance de sua autoria. Mais perturbador ainda: o romance fora lançado em um café-livraria com o mesmo nome de um café que funcionava no local onde o autor pretensamente teria morrido. Perturbador.
Do ponto de vista metafísico e existencial o romance sugere uma nova relação do morto (ainda vivo) com a morte. Do ponto de vista da narrativa, especialmente nas páginas finais do livro, tem-se a impressão de que se lê as memórias de alguém que efetivamente morreu. Retoma-se a tradição machadiana das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Não por acaso, o texto de Cuenca é antecedido para passagem das Memórias, no passo em que Machado registrou (em nome de Brás Cubas) que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Para estarrecimento do leitor, o narrador (morto ou vivo) é de inquestionável sinceridade.
O livro de Cuenca aponta também para um tema central na vida do carioca. Ele discute com profundidade a revolução imobiliária vivida no Rio de Janeiro, especialmente no momento que antecedeu às olimpíadas. Descreve um doloroso processo no contexto do qual pretende-se que o Rio deixasse de ter habitantes, e que fosse habitado apenas por turistas. Cuenca intui algumas analogias entre a remodelação do centro do Rio, a preparação para as olimpíadas, com a remodelação do centro do Rio, ocorrida no tempo do prefeito Pereira Passos, no início da república velha. O escritor Lima Barreto (que Cuenca cita) foi um dos grandes críticos da violência como o Rio foi remodelado. Utiliza-se a expressão “haussmanização do Rio de Janeiro” em analogia ao Barão Haussmann, prefeito de Paris que remodelou aquela cidade. Haussmann era conhecido como o “artista demolidor”.
Cuenca conhece a cidade. Lembra-nos a destruição do Morro do Castelo e a construção do aterro central. Sabe-se que até o mar chegava até o Outeiro da Glória. Conhece a Lapa, à qual se refere como um antigo conjunto de artérias pantanosas, cortiços e mansões, cercados pelos morros do Senado e de Santo Antônio. Muita terra foi daquela área retirada. Entulhos e pedras foram utilizados para aterrar parte da zona portuária, e parte da região do Valongo, na Gamboa, porta de entrada dos escravos africanos. Lugar mais triste pode não haver no país.
Cuenca, nesse passo, critica impiedosamente a especulação imobiliária (em forma de dominó) que expulsou do centro do Rio uma população que não acompanhou a alta dos preços e a pressão dos investidores externos. Há europeus no livro, aventureiros que imaginavam faturar com as reformas do Rio, um tipo asqueroso comum nessas épocas de desumanização da experiência urbana.
Há também uma muito bem construída crítica à violência policial, especialmente em relação ao “choque de ordem”, situação de tolerância mínima, que se implantou no Rio, ao longo dos jogos olímpicos. O livro, assim, é atualíssimo, cotejado com a situação presente, marcada pela violência contra os marginalizados de sempre. É a chamada teoria criminológica do “labelling approach”. Só apanha quem é pobre.
Outros pontos interessantes também frequentam a narrativa, a exemplo de festanças de bem-nascidos no Rio de Janeiro, crises conjugais, rotinas de solidão em uma cidade movimentada. A narrativa é tensa, em primeira pessoa, confessional, desconcertante. Mais uma prova de que há uma literatura brasileira contemporânea que nada deve aos autores dos manuais escolares, que transitam da literatura de informação para os regionalismos, para a geração de 45 e para as poesias participantes e concretas. Há muito mais do que isso na literatura brasileira. O livro de Cuenca é dessa afirmativa uma prova ao meu ver inquestionável.