Diário da Queda, de Michel Laub
Diário da Queda, de Michel Laub
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Diário da Queda, de Michel Laub, é um livro que coloca uma questão ao leitor, da primeira à ultima linha: é ficcional ou autobiográfico? Há muitas (inúmeras) pistas que sugerem que Laub registrou suas relações com o judaísmo, com o tema da culpa alemã, com o pai, com a escolha da profissão, com três casamentos. A fixação de Porto Alegre como referência topográfica principal é outro indicativo de que o autor conta a própria vida. Michel Laub é de Porto Alegre.
O narrador conhece muito da cultura judaica no Rio Grande do Sul. Com segurança refere-se à estação praiana de veraneio (Capão da Canoa, a 130 km de Porto Alegre), ao ambiente escolar, à cerimônia do Bar Mitzvah e a agonia do não judeu e assimilado, o “gói”, que foi violentado pelos colegas. As descrições da escola judaica repetem o topoi (interessantíssimo) da reminiscência escolar, que é o tema de um livro canônico em nossa literatura, o Ateneu, de Raul Pompéia.
A narrativa se desdobra em vários fios condutores que de algum modo se encontram. Há forte paralelismo narrativo, o que dá muita coerência ao texto. Nesse paralelismo, os cadernos de anotação do avô (sobrevivente de Auschwitz), os cadernos de lembrança do pai (lutando contra o Alzheimer) e a violência feita com um colega de escola, que não era judeu, e que era hostilizado pelos demais colegas, a par dos dilemas conjugais do narrador. A violência contra o colega, tenho essa impressão, é o ponto justificativo central da culpa que acompanha o narrador. Justifica, inclusive, o título do livro. Em uma festa de aniversário o colega não judeu submeteu-se a uma cerimônia judaica, e os colegas muito maldosamente provocaram um acidente grave.
O narrador é um homem em recorrente diálogo com suas culpas. E a culpa é um assunto substancialmente judaico. Karl Jaspers, em intrigante livro sobre a culpa alemã, afirmava que havia judeus que se sentiam culpados porque sobreviveram aos campos de extermínio: é a culpa por não ter sido executado. Há no livro de Michel Laub também um forte argumento freudiano. O narrador parece sentir-se culpado pela relação que tinha com o pai. O leitor vai se lembrar de um escritor judeu, Kafka, que também viveu situação conflituosa semelhante, e que registrou em forma de testemunho, uma carta, que joga lenha na fogueira dessa discussão.
Michel Laub carregou a narrativa com doenças devastadoras, a exemplo do que fez no Tribunal da Quinta-Feira. É um tema do autor. No Tribunal da Quinta-Feira a tragédia era representada pela AIDS. No Diário da Queda, o medo para com o Alzheimer e o enfrentamento do alcoolismo dão o tom nosocômico ao livro. Um pouco de Thomas Mann vai por aí, e refiro-me à tuberculose, nas linhas da Montanha Mágica.
Há algo de Hannah Arendt no livro também. Arendt irritou a comunidade judaica ao pegar leve com Adolf Eichmann no famoso julgamento de Jerusalém. No livro de Michel Laub há páginas de fortíssimo revisionismo, inclusive com a negação das estatísticas oficiais de Auschwitz. Se ficcional, enfatiza-se a coragem do autor. Se autobiográfico, há indícios da revolta de filho contra pai. O narrador quer continuar a vida, independentemente da tragédia, situação conflitiva que o pai não formulou e enfrentou.
Insisto, a obsessão do avô do narrador com Auschwitz, e com o holocausto, parece marcar também o pai do narrador, e o distanciamento com o filho. Ainda que simbolicamente, a doença de Alzheimer (uma patologia de amnésia) pode sugerir uma metáfora do esquecimento, como defesa da tragédia vivida no campo de concentração e, ao mesmo tempo, como resistência do filho para com a monotonia temática do pai. Ao longo do livro, há muitas lembranças de Primo Levi, químico e escritor italiano que nos deixou o mais dramático relato de sobrevivência no horror nazista. O assunto marca intensa produção bibliográfica, assunto também recorrentemente levado para o cinema, a exemplo de A Lista de Schindler (dirigido por Steven Spielberg), O Menino do Pijama Listrado (dirigido por Mark Helman) e O Pianista (dirigido por Roman Polansky), entre tantos outros.
Michel Laub nos remete à famosa “metáfora do dedo em riste”, que o filósofo alemão Jürgen Habermas problematizou como uma “recordação autocrítica de Auschwitz” a propósito da discussão em torno da construção de um memorial às vítimas do nazismo. Para Habermas, “quem considera Auschwitz ‘nossa vergonha’ [alemã] está interessado apenas numa imagem que os outros fazem de nós [alemães], não na imagem que os cidadãos da República Federal da Alemanha formam de si mesmos, ao olharem para o passado e para a ruptura provocada na civilização, a fim de poderem olhar-se a si mesmos no rosto e readquirirem o respeito recíproco”.
Michel Laub tocou em um problema historiográfico gravíssimo. Isto é, a teoria do dedo em riste argumenta que a grandeza histórica e cultural alemã (Beethoven, Goethe, Hegel, Schopenhauer, Lutero, Thomas Mann, Kant, Mozart, Schubert, Max Weber, entre tantos outros nomes) seria recorrentemente contrastada com os horrores do nazismo. À pátria da filosofia se contrasta a barbárie de um processo de descivilização. Em Diário da Queda o narrador tomou um lado na história e parece defender o esquecimento, como condição para a continuidade sadia de nossas trajetórias.
Pode haver muita semelhança entre a narrativa e o narrador, ainda que leitores distantes não conheçamos o elo. Na tradição dos existencialistas franceses, o Diário da Queda é um livro de permanente questionamento sobre o sentido da vida. Na tradição de escritores brasileiros de cultura judaica, como Moacyr Scliar, o Diário da Queda é um livro que toca no complexo problema da assimilação dos judeus no ambiente brasileiro do pós-guerra.
Diário da Queda é um livro sobre problemas atualíssimos, como o alcoolismo, e ao mesmo tempo sobre uma das mais assustadoras questões que nos desafiam, isto é, o modo como nos relacionamos com nossos pais. Fundamentalmente, é também um livro sobre nossas responsabilidades para com nossas ações ou omissões. O narrador não se perdoa pela violência praticada contra o colega que não era judeu e que era pobre e que, por isso, era permanentemente agredido pelos colegas. Isso nos faz refletir sobre as rotas que impomos a nossos filhos, ainda enquanto podemos. Diário da Queda é um livro muito sério, que condensa dilemas instransponíveis. É um livro que nos faz pensar nas culpas que todos carregamos.