Diário das minhas leituras/46
16/12/2019 – MARAVILHAS DO CONTO INFANTIL
Faltava ainda esse volume para eu terminar a leitura da coleção “Maravilhas do Conto” – são 30 volumes no total. Esse volume, sendo voltado ao conto infantil, privilegia história de Andersen, Irmãos Grimm e Charles Perrault. Na verdade, é o único volume de toda a coleção que dedica vários contos a um mesmo escritor ou escritores. Isso se justifica pelo fato de que aquilo que a gente entende por “conto infantil” é, realmente, aquilo que foi produzido principalmente por esses nomes, mas não deixo de pensar que seria possível fazer uma antologia mais abrangente, quem sabe resgatando tesouros infantis que não são mais tão lembrados. Não saberia citar exatamente quais nomes mereciam um lugar nessa antologia, apenas o do E.T.A Hoffmann, com a história do Quebra-Nozes. Imagino que mesmo no Brasil haveria, já naquela época, contos infantis a se destacar. Uma parte do livro é dedicada a “lendas brasileiras”, histórias bem curtas, que podem agradar as crianças, mas a mim ficou a impressão de que fariam melhor papel em volumes como “Maravilhas do conto popular”. Há também fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine. Achei que nem todas caem tão bem assim numa antologia voltada ao público infantil. “O conselho dos ratos”, do La Fontaine, por exemplo, é claramente direcionado ao público adulto. De toda forma, um dos momentos mais interessantes do livro é a história “Branca de Neve e os Sete Anões”, dos Irmãos Grimm, história que é bem conhecida na versão da Disney, mas aqui somos apresentados à versão escrita original, o que nos faz perceber o quanto a Disney “suavizou” a história. Afinal, na versão dos Irmãos Grimm, a Branca de Neve é uma menina de sete anos de idade. Embora não haja a cena do beijo com o príncipe, quando Branca de Neve está dentro do caixão, há o casamento do príncipe com a menina de sete anos de idade, o que não seria tolerável para o público de hoje. E a morte da madrasta teve requintes de crueldade. Um dos méritos do livro é, justamente, apresentar a versão escrita original de histórias bem conhecidas, como também é o caso “O patinho feio”, de Andersen (o patinho NÃO era negro, como em várias adaptações), “A borralheira” (uma versão absurdamente violenta em que as irmãos de Cinderela CORTAM PEDAÇOS DO PÉ para caber no sapatinho, e ao fim da história tem os olhos furados por pombos), dos Irmãos Grimm, bem como “Capinha Vermelha” (A história do Chapeuzinho Vermelho é mais parecida com o que se conta até os dias de hoje), e “O gato de botas”, de Perrault. Há ainda um conto de Marie-Catherine d’Aulnoy, escrita que deu origem ao termo “contos de fadas”, e a russa Condessa de Ségur, que faz uma interessante trama em “História da princesa Rosinha”, embora levando a tal ponto a interferência das fadas que os próprios seres humanos não passariam de joguetes na mão delas, quase sem livre-arbítrio. Foi, de toda forma, uma leitura interessante, e a coleção “Maravilhas do conto” é mesmo maravilhosa.
24/12/2019 – KURT VONNEGUT
Li agora o célebre “Matadouro 5”. O refrão "coisas da vida", repetido à exaustão ao longo da trama, é indicativo de como nos acostumamos e naturalizamos situações que claramente nada têm de natural. Todo o livro sugere que há algo de profundamente errado no modo como organizamos a nossa vida. Embora seja tida como a obra-prima do autor, eu gostei muito mais dos contos de "O mundo louco", que li antes e que realmente me entusiasmaram na sua mistura de ficção científica e crítica aos costumes.
24/12/2019 – DOSTOIEVSKI
É difícil não imaginar que Dostoievski tinha algum grau de fobia social, pois, do contrário, não conseguiria escrever mais de um relato tão certeiro sobre o que é a vida para as pessoas em tais condições. Como em "Notas do subterrâneo/Memórias do subsolo", é claramente um personagem com fobia social o que Dostoievski apresenta em "Noites brancas". Em ambas as histórias, além do nítido isolamento, percebe-se a confusão do personagem quando tem o seu mundo de segurança (ou seja, a sua casa) "invadido" por outra pessoa. Em "Noites brancas", o personagem faz reflexões como "Organiza-se tão facilmente um mundo fantástico! E quem sabe se é apenas miragem? É, talvez, dos dois mundos, o mais real", o que pode ser um bom mote para se refletir sobre o "mundo virtual" e como ele recompensa pessoas com fobia social. Isso tudo em uma trama amorosa tristíssima de doer, e que é mais triste precisamente pelo que representa para uma vida que se apaga por conta da fobia.
31/12/2019 – MELHORES CONTOS LIDOS EM 2019
Apenas um conto de cada escritor, do contrário seria uma chuva de contos de Dorothy Parker, Vonnegut e Maupassant.
Aharon Megued (ISR), O nome
Aluísio Azevedo (BRA), Demônios
Arthur Schnitzler (AUT), A profecia
Carry van Bruggen (HOL), O incompreendido
Chaim Grade (LIT), Minha querela com Hersch Rasseiner
Cristopher Isherwood (ING), Estou à espera
David Pinski (BIE), Ela era feia
Domingos Pellegrini (BRA), A maior ponte do mundo
Dorothy Parker (EUA), Nova York chamando Detroit
Elli Pelin (BUL), O advogado
Eusebiu Camilar (ROM), O sorriso
Félix Pita Rodríguez (CUB), Tobias
Ferreira de Castro (POR), O Senhor dos Navegantes
Francisc Monteanu (ROM), O pintor do gueto
Fredric Brown (EUA), Arena
Gastão Cruls (BRA), O abscesso de fixação
Gibran Khalil Gibran (LIB), Satanás
Guy de Maupassant (FRA), O albergue
Ha Kem-chan (COR), O sofrimento de duas gerações
Han Mahl-Sook (COR), K
H. P. Lovecraft (EUA), Entre as paredes de Eryx
Hwang Soon-won (CRN), Estrelas
Itzchak Dov Berkovitz (BIE), Vidro
Karel Čapek (RTC), A empregada me rouba
Kurt Vonnegut (EUA), Vista e use
Ivan Turgêniev (RUS), Relíquia Viva
Jack London (EUA), Fazer uma fogueira
Jan Neruda (RTC), Escrito no Dia de Todos os Santos
Josef Martin Bauer (ALE), Pois o homem busca o calor
Jószef Nyirö (HUN), A última vontade
Júlio Cesar Monteiro Martins (BRA), Sabe quem dançou?
Lia Correa Dutra (BRA), A finada D. Aninhas
Lima Barreto (BRA), O filho de Gabriela
Liviu Rebreanu (ROM), Isaac Israel, desertor...
Luise Rinser (ALE), Um velho morre
Manuel Joaquim Reis Ventura (POR/ANG), Carabina de precisão
Marcellus Emants (HOL), Um excêntrico
Margaret Atwood (CAN), Peso
Nathan Schahan (ISR), A mão do destino
Ondina Ferreira (BRA), Pássaro assustado
Rabindranath Tagore (IND), O abandonado
Rainer Maria Rilke (RTC), Como o dedal veio a ser o bom Deus
Ram Cubar (IND), Tempestade de poeira
Rogério de Freitas (POR), Partir, a tarefa acabada
Sholem Asch (POL), Cristo no gueto
Schlomo Nitzan (ISR), À margem do Mar Morto
S. Izehar (ISR), Efraim volta à alfafa
Stefan Zweig (AUT), Dívida paga tardiamente
Steven Millhauser (EUA), O atirador de facas
Yehuda Yaari (ISR), O julgamento de Salomão
03/01/2019 – CRONISTAS DO ESTADÃO
O Estado de São Paulo é um dos jornais mais antigos em atividade no Brasil. Ao longo da sua história, escritores dos mais diferentes estilos praticaram em suas páginas o gênero da crônica. No início da década de 1990, decidiu-se reunir em uma coletânea os mais representativos entre esses escritores. Surgiu então “Cronistas do Estadão“, abrangendo um período de 100 anos do jornal: as crônicas vão de 1892, com Raul Pompeia, até 1991, com Rachel de Queiroz. As crônicas mais antigas não têm ainda o formato clássico que seria atribuído ao gênero, sobretudo a partir de Rubem Braga, mas é de se notar que várias das características comuns à crônica já eram praticadas por esses pioneiros no gênero. Raul Pompeia, por exemplo, comenta sobre a inusitada decisão de se transferir o carnaval do Rio de Janeiro para o inverno. O escritor se vale de um tema noticiado e colhe impressões gerais conforme a sua visão da cidade. A relação com o fato noticiado se mantém no gênero até os cronistas atuais. Já Vicente de Carvalho, que faz um texto límpido mesmo para os dias de hoje, brinca com um tema aparentemente banal (a chuva), criando a partir dela teorias que são menos disparatadas do que se imagina. O cronista, ainda em nossos dias, com frequência levanta hipóteses e suposições que, se por um lado fazem rir, por outro sugerem pensamentos mais profundos. Olavo Bilac, que foi um cronista bastante combativo, comparece no livro com um texto de temática urbana, fazendo a “ocupação” do espaço em que vive, em uma relação entre cronista e cidade que também sempre marcou o gênero. Entre os escolhidos para essa coletânea, porém, estão também autores que não são necessariamente exemplos de cronistas, não tendo dedicado-se a ela senão muito eventualmente, casos de Euclides da Cunha (que se aproxima da reportagem) e Rui Barbosa (que se aproxima do artigo). Foi sob a rubrica da “crônica”, no entanto, que escreveram textos no Estadão, e não deixa de ser uma experiência interessante conhecer esse tipo de produção desses autores. Há ainda escritores bem mais famosos em outros gêneros, como é o caso de Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, além de um surpreendente Erico Verissimo, que faz de “Drama num aquário”, possivelmente, a melhor crônica do livro. Ali está o uso de tema aparentemente banal e despretensioso, como é uma briga entre dois peixinhos em um aquário, mas a partir dele o escritor faz uma reflexão das mais interessantes sobre o próprio comportamento do ser humano. Com frequência, os cronistas falam grandes verdades como quem não quer nada e Erico Verissimo – que é um destacado romancista – demonstrou que também podia ter esses traquejos do gênero. Se esses são escritores mais “nacionais”, há também um interessante time de cronistas que tiveram sua produção centralizada em São Paulo e nas páginas do Estadão. A começar por Luís Martins, um dos cronistas mais profícuos do Brasil, que escreveu por décadas no jornal. Outro nome de destaque para o Estadão foi o de Guilherme de Almeida, único a comparecer no livro com três crônicas, ainda que curtas, notando-se em todas a sua capacidade de produzir poemas em prosa. Outros nomes do Estadão são Vivaldo Coaracy, Alfredo Mesquita, além de outros escritores e jornalistas contemporâneos à publicação do livro, entre eles Raul Drewnick, hoje cronista da RUBEM, autor da sensível e bem construída crônica “Em tempo de miojo”. Fazem parte do livro, também, alguns dos nomes mais importantes da crônica, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e Luis Fernando Verissimo, todos cronistas durante a maior parte da vida e, em algum momento, do Estadão. Rachel de Queiroz, também presente, é outro desses nomes que se dedicaram à crônica ao longo de toda a sua trajetória literária. Era já a época de Caio Fernando Abreu, que aparece com “Pequenas epifanias”. A crônica de Gustavo Corção se mostra interessante pelo conteúdo, uma vez que trata da sua improvável amizade com Oswald de Andrade. Destaque-se ainda João Antônio e o polêmico Paulo Francis. Lê-se rapidamente o livro. É um recorte interessante e seria bom se outros veículos antigos no Brasil organizassem antologias similares. O próprio Estadão bem poderia lançar uma nova edição, considerando que também já foram cronistas do jornal nomes como João Ubaldo Ribeiro e Mário Prata.
09/01/2020 – DAI SIJIE
Comecei o meu “ano asiático” com “Balzac e a costureirinha chinesa”, de Dai Sijie. Livro que mostra muito bem a força e o poder da arte de se contar histórias, sejam elas tiradas de livros, de filmes ou simplesmente contadas oralmente. O poder de uma história é muitas vezes o único recurso que se tem para escapar de uma realidade que é opressora. Por meio de uma história, escapa-se momentaneamente de todas as ditaduras e vive-se aquilo que talvez nunca se tenha oportunidade de viver. Uma história permite imaginar novos mundos e novas realidades, ensinando que as coisas não necessariamente devem ser do jeito que elas se apresentam hoje. Uma história liberta e faz voar, como voou a Costureirinha, como voaram todos nesse livro que tiveram contato com o mundo mágico da imaginação. Em termos de narrativa, chama a atenção a quantidade de pequenos momentos de tensão que o escritor soube trabalhar. Achei apenas que o livro poderia passar sem os recursos à metalinguagem (que não são muitos e, por isso mesmo, não fariam falta) e que a estratégia, em determinado ponto do romance, de se dar voz a três personagens, mudando o foco narrativo, talvez não tenha sido a ideal. Mas é um belo livro.