1984, de George Orwell
1984, de George Orwell
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Sobre o livro 1984, de George Orwell, tenho a impressão de que tudo já dito, escrito e explicado. Esse perturbador texto já foi esquadrinhado, esmerilhado, glosado, de todos os ângulos e à luz de todos os problemas que seu autor propôs, ou que nem mesmo pensara em propor. Aviso que não há nada de novo nas observações que seguem. Há apenas uma inquietação para com mal-entendidos que derivam de palavras inadequadamente faladas ou escritas. Falamos mais do que devíamos e menos do que pensamos. Onde estaria o meio termo?
1984 faz parte de um conjunto de obras que predicam cética e negativamente o futuro, ao lado, entre outros, de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Esses livros descrevem sociedades manipuladas, opiniões públicas forjadas pelos detentores do poder, relações humanas frias, mediadas pelo uso de computadores e da cibernética. Huxley e Orwell anteciparam-se às mensagens de celulares, muitas vezes cheias de malícia e de intenções duvidosas. Essas obras anteciparam-se a todas as formas presentes de controle. Inclusive são pródigas no uso do silêncio, que pode ser mais ensurdecedor do que aquele grito do quadro de Edward Munch (1893). Um silêncio fulmina mais do que mil discursos. Lembremo-nos da personagem cheia de mágoas da Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, livro genialmente transportado para o cinema, com as atuações de Meryl Streep, Glenn Close, Jeremy Irons e Winona Ryder.
Na distopia de 1984 palavras e conceitos foram transformados, em contexto no qual hábitos se transformavam em instintos. Winston Smith, o herói solitário, em seus 34 anos opressivamente vividos, funcionário do Ministério da Verdade, simboliza o destinatário dessa transformação conceitual, na qual as palavras deixam de exprimir coisas e conceitos. Smith trabalhava no Departamento de Documentação. O título é sugestivo, e pode designar simplesmente todos os lugares da burocracia.
Outras palavras subvertidas havia. Na Novi língua (língua de 1984) “vaporizar” significava “executar”; isto é, quanto aos opositores do regime, “na vasta maioria dos casos não havia julgamento, não havia registro de prisão (...) as pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a noite”; o desaparecido era cancelado, aniquilado, dizia-se que fora “vaporizado”. Pequenas metáforas que insinuavam ações perversas.
Nessa imaginária sociedade (que tinha endereço: Londres, Faixa Aérea Um, província da Oceânia) quatro ministérios dividiam as atividades de controle e de administração. O Ministério da Verdade cuidava das notícias, do entretenimento, da educação e das belas artes. O título é ortodoxo. O Ministério da Verdade era imenso, contava com cerca de três mil salas. Ocupava-se com a criação da realidade, da fixação de assuntos e circunstâncias, o que talvez não se distancie muito de alguma imprensa contemporânea, a serviço do interesse de seus controladores. O Ministério da Verdade tinha por incumbência forçar a todos a aceitar como verdadeiras as mentiras contadas pelo partido. Tinha-se por certo a necessidade do controle da verdade; afinal, “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o futuro”. O passado, em 1984, não fora alterado ou transformado: fora simplesmente destruído.
O Ministério da Pujança cuidava da economia planificada. O título é otimista. O Ministério da Paz cuidava da guerra. O título subverte meios e fins ou, no limite, realizava o plano infalível dos estrategistas romanos, que afirmavam que o melhor preparo para a paz é a preparação para a guerra. Paradoxal, mas muito eficiente.
O Ministério do Amor cuidava da lei e da ordem. O título descentra e desconecta a ideia de amor, enquanto força criadora, tornando-o um rotulo para com a obediência ao regime. O Ministério do Amor era, também paradoxalmente, o mais apavorante. Segundo Orwell, “o edifício não tinha nenhuma janela (...) era impossível entrar sem uma justificativa oficial, e mesmo nesses casos, só transpondo um labirinto de arame farpado, portas de aço e ninhos ocultos de metralhadora”. Também metaforicamente, essa definição topográfica de amor parece ser desconcertantemente fiel: o arame, o aço e a bala semelham barrar qualquer forma de entrega na vida real, ainda que signifiquem reciprocidade, o que qualifica qualquer relação humana civilizada. Sem reciprocidade, só há doação, que um dia se esgota em si mesma, quando se percebe sua total perda de sentido. Denomino de doações unilaterais: tudo se dá, nada se pede em troca. Bonito nos livros de autoajuda, constrangedor quanto tenta se ajudar verdadeiramente; ou pelo menos quando se tenta sobreviver.
Em 1984, o Partido tinha como slogan as afirmações de que a guerra era a paz, a liberdade era a escravidão e a ignorância era a força. Curiosamente, em 1984 nada era ilegal, justamente porque não existiam leis. Ainda assim, algumas ocorrências eram punidas com a pena de morte, o que sugere um mundo contraditório: não havia leis, porém havia sanções.
Havia um inimigo do povo, Emanuel Goldstein, contra quem se devotavam os sagrados “dois minutos de ódio” diários. Fora um traidor original, “o primeiro conspurcador da pureza do partido” . Nas cerimônias dos “dois minutos de ódio”, “um barulho mexia com os nervos das pessoa e arrepiava os cabelos da nuca” ; algo como um bater interminável de panelas. Em contraposição, o “Grande Irmão”, que a todos vigiava, e cujo o retrato em todos os lugares estava. Goldstein e o Grande Irmão foram inimigos viscerais. Goldstein fora banido porque defendia a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião; além do que, gritava histericamente que a revolução fora traída” . Venceu o “Grande Irmão”.
O sistema também funcionava na premissa de que o inimigo do momento era o fiel representante do mal absoluto . Era preciso, assim, singularizar e identificar o inimigo a todo o tempo. Sua eliminação era condição mesma de sobrevivência do regime. O direito penal do inimigo, moda da criminologia contemporânea, assustadoramente verdadeiro, já fora ensaiado na distopia de Orwell.
1984 é um livro belíssimo, sempre atual, que sugere que as palavras dizem menos do que queremos, signifiquem mais do que desejamos, não reflitam nunca exatamente o que queremos e que escondem sempre o que realmente pensamos.