Minha Formação e o Estadista no Império, de Joaquim Nabuco
Minha Formação e o Estadista no Império, de Joaquim Nabuco
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
A recorrente presença de Joaquim Nabuco na formação da cultura nacional é convite para retomada de sua obra memorialística e de história do império. As páginas de Minha Formação, bem como excertos de Um Estadista no Império, fornecem material para investigação da vida, do tempo e das ideias do humanista dito campeão do abolicionismo.
Joaquim Nabuco notabilizou-se pela extraordinária capacidade de argumentador, aglutinador e de líder pela inteligência. Mas também contraditório, porque revolucionário e ao mesmo tempo conservador (na visão de um conterrâneo), dândi que simultaneamente fora o centro de um furacão (na percepção de uma biógrafa recente, Angela Alonso), Joaquim Nabuco é o retrato mais bem acabado da cultura brasileira da segunda metade do século XIX, proscênio de patriarcas e bacharéis, espremidos por um remorso incurável que os atingia desde o ocaso do imperador, que deixou o país num vapor noturno, como se fosse um escravo fujão, nas próprias palavras da então decaída Majestade.
Era um tempo de escolhas inconciliáveis. Na organização do Estado, Império ou República? Na formulação econômica, agricultura ou indústria? Na literatura, romantismo ou realismo? Na filosofia, o positivismo francês ou o idealismo alemão? Na política, conservadorismo ou liberalismo? Na fixação do regime de trabalho, escravos ou proletários? Na parceria, Inglaterra ou Estados Unidos?
O maniqueísmo que o século XIX viveu colocava perguntas irrespondíveis; mal formulados, os problemas refletiam menos o que efetivamente se vivia, do que o pensamento dos que nutriam a existência na exploração inconsciente daquelas contradições. E no mundo das escolhas, a paixão cede à razão, não sem a cobrança do pedágio faustiniano da opção pelos desejos incontidos: a questão é muito freudiana.
Expiava-se a culpa na prosaica justificativa da escolha heroica. Na percepção de Luís Martins, “o debate íntimo de Joaquim Nabuco é quase patético (...) ele discute consigo mesmo, desculpa-se, justifica-se, explica-se (...) essa ânsia de se exculpar se me afigura profundamente comovedora.”
A queda da Monarquia foi também um dos resultados diretos da campanha abolicionista. Esta última anunciou que o Império se esgotou na própria seiva. Para Nabuco a escravidão era uma ilegalidade, uma “trilogia infernal, cuja primeira cena era a África, a segunda o mar, a terceira o Brasil”. Anotou no diário, em entrada de 13 de maio de 1888, que ouvia o próprio nome aclamado no Senado, com o povo em delírio no recinto: era a consagração, que custaria, no entanto, o trono da dinastia Bragança...
Fiel ao imperador, crente nas virtudes do Império, mas antes de tudo um brasileiro que se pensava genuíno, Joaquim Nabuco não poderá festejar a vinda da República. E também não lutou por ela, objetivamente. Embora, por força da campanha abolicionista, seja da República um dos mais importantes fundadores e responsáveis, como o foram também os Bocaiúvas, os Deodoros e os Florianos da vida real, e os Policarpos Quaresmas da prosa de Lima Barreto.
O realismo era o tom característico dos políticos do Império, divididos entre liberais e conservadores, luzias e saquaremas. Substancialmente, os antagonistas diziam as mesmas coisas. Não avançavam, não recuavam, mas também se recusavam ao imobilismo... Sobreviveram os que conciliavam. Nabuco, pai e filho, são exemplos dos sobreviventes daqueles dias em que pensávamos que tínhamos nossos tories e whigts.
O pai (Nabuco de Araújo) é a figura central na construção da memória de Joaquim Nabuco; era do pai que este último reivindicava o fundo hereditário de seu liberalismo. O trânsito que o pai viveu entre os dois extremos imaginários, conservadorismo e liberalismo, fora pelo filho plenamente justificado como ato refletido e ponderado, que sempre tinha como mira o bem da pátria. O pai é o lutador, o vencedor, pertencente “à forte família dos que se fazem asperamente por si mesmos, dos que anseiam por deixar o estreito conchego da casa e procurar abrigo no vasto deserto do mundo, em oposição aos que contraem na intimidade materna o instinto doméstico predominante”.
Construído na prática, e não abstração teórica e gongórica, o pai é o símbolo do homem de ação; segundo o biógrafo, o biografado “nunca fez estudos sistemáticos ou gerais de direito, não esquadrinhou o direito como ciência; viveu o direito, se se pode assim dizer, como juiz, como advogado, como ministro (...) essa falta de estudos metódicos na mocidade fa-lo-á até o fim tratar o direito como uma série de questões práticas e não abstratas”. O pai é a figura recorrente em todos os instantes da formação do caráter e das ideias. A admiração pelo pai é constante na pena memorialística do filho.
Joaquim Nabuco também seguia a geração do pai na admiração incontida pela Inglaterra e pelo pensamento inglês, tradição que remontava ao Visconde de Cairu, que opunha ao modelo norte-americano, foco de críticas e comparações, não se esquecendo que foi nos Estados Unidos, como embaixador brasileiro, que Nabuco viveu os quatro últimos anos de sua vida.
Joaquim Nabuco repudiava o presidencialismo, o regime com o qual terá que compor a partir do golpe de 15 de novembro de 1889, em momento que certamente o afetou com uma profunda crise de consciência. Porém, certa ambiguidade se revelava com a confissão de que o republicanismo também o fascinava. Mas era a Londres da velha Monarquia que o encantava. A declaração de amor pela city não deixava dúvidas: “A grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, se eu vivesse entre o século II e o século IV e um dia, transportado de minha aldeia transalpina ou do fundo da África romana para o alto do Palatino, visse desenrolar-se aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basílicas, circos, teatros, termas e palácios (...). O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade, que somente Londres me deu (...)”.
A influência inglesa foi talvez a experiência mais marcante na fixação de seu espírito liberal; e no livro de confidências confessava que sua passagem pela Inglaterra havia lhe deixado uma convicção, que depois se confirmara nos Estados Unidos, de que somente havia, inabalável e permanente, um grande país livre no mundo. A Inglaterra lhe era cara, imbatível, especialmente se cotejada com a grandeza norte-americana que então despontava.
Monarquista que lutou contra a escravidão, instituição que era um dos esteios da Monarquia; revolucionário cuja medida da rebeldia era o gesto sublime da conciliação; admirador de uma Inglaterra ordeira que teimava em se reproduzir em algumas fórmulas norte-americanas; jornalista na Inglaterra e embaixador nos Estados Unidos; filho devoto cuja devoção substancializou-se no abre-te-sésamo de fulgurante carreira política; historiador, publicista, memorialista e diplomata, Joaquim Nabuco é a síntese das tensões que marcaram a passagem da Monarquia para a República.
Embora livre das idiossincrasias dos positivistas, dos maneirismos dos militares e das intenções ocultas das oligarquias do café, em Joaquim Nabuco são nítidas as contradições de um tempo indefinido. São várias ambiguidades, dissolvidas em reminiscências que transitam em páginas de uma história na qual a explicação era a própria narrativa. São ambiguidades que há em todos nós. Em tempos difíceis, não avançamos, não retroagimos, mas também não nos entregamos ao imobilismo. Nos parecemos, em nossa falta de atitude e de ação, com os políticos do século XIX que Machado de Assis retratou no “Velho Senado”.