Adoecimento da alma

O que seria de nós se não existisse a Literatura? Talvez sua ausência não alterasse em nada o curso da humanidade, mas só talvez. Acredito que ela seja tão imprescindível quanto o ar, a água, o sol; tão necessária quanto o alimento, o lar, o repouso. Ela nos acompanha desde os tempos mais remotos e nem todos somos capazes, ainda, de compreendê-la, senti-la, amá-la. Muitos a ‘curtem’, compartilham; outros a tratam como hobby; outros, porém, vivem dela, para ela e por ela. Sem mais delongas, e concordando totalmente com Lobato, Ziraldo... – o livro deve ser gênero de primeira necessidade; ele é, sem dúvida, alimento para o corpo e para a alma... Foi essa a sensação adquirida ao me debruçar em Conservatório , da pernambucana Evana Ribeiro. Publicado em 2019, o enredo inicia-se com descrições, apresentações e recortes da rotina de uma família, cujo narrador nos dá indícios de que é tão problemática quanto qualquer outra, ou seja, não há idealizações ou romantizações nas atitudes das personagens – ele nos apresenta como verdadeiramente são.

Por tratar-se de uma novela, o enredo é curto, o número de personagens é reduzido, e as histórias deles (que se cruzam) são bastante pontuais: Lídice, a primogênita, se realiza fazendo o que mais gosta na vida: ser pianista; suas irmãs gêmeas (Fernanda e Vânia), adolescentes, que vivem a se culpar pela morte da mãe, que chegou a falecer no momento do parto destas, e, não bastasse esse trauma, acreditam ser inferiores e incapazes diante do destaque e excessiva atenção dada (por todos) ao brilhantismo da irmã mais velha; Carlos, o patriarca da família, tenta amenizar, o máximo possível, os entraves existentes entre as filhas – e que quase sempre falha nesta tarefa. Também temos Walter, grande músico professor de piano – um dos melhores daquele conservatório, quiçá da região, que rege aulas a Lídice desde o escolar; enfim, há outras personagens que se apresentam no decorrer da narrativa, como Arthur, Ana Paola, as empregadas...

Em suma, o relevo da obra direciona-se para a ausência da empatia, afetividade e respeito entre os membros do mesmo clã, pois notamos que tais carências acarretaram ações desesperadoras, desumanas – por sua vez evitáveis, se houvesse e tivessem, ao menos, uma rotina de diálogo, companheirismo e amizade entre pai e filhas. Certamente, não somos possuidores do poder de modificar a personalidade de ninguém, no entanto, somos capazes de mostrar as possibilidades para seu melhoramento / aprimoramento contínuos... mas isso não foi possível tendo em vista que cada um (pai, irmãs) estava centrado em seu próprio (e limitado) mundo, colocando em prática o tão famoso “viver de aparências”.

Quem sabe, por demonstrar tanto entusiasmo em relação às conquistas da filha mais velha, Carlos tenha escanteado, sem perceber, as outras filhas? Ou, ao mesmo tempo em que as gêmeas, ainda adolescentes, eram incapazes de compreender que assim como Lídice encontrou seu rumo, sua identificação com a música, elas também alcançariam seus rumos em seu devido tempo?... Mas não, tornaram-se amargas, invejosas, julgavam-se sem brilho, sem atenção, sem amor paterno, tudo consequência da irmã mais velha que, pensavam, ofuscava seus brilhos.

A imaturidade também se transformou em loucura, a ponto de Vânia acreditar-se ‘apaixonada’ por Walter mesmo ao saber que o coração deste pertencia a outra mulher, por ironia (talvez só ironia mesmo) à sua irmã Lídice. Mas ela não desiste, acaba canalizando mais ódio pela irmã – que, além de ser boa e melhor em tudo, também roubara seu amor – ou seja, na concepção de Vânia, àquela queria tudo para si. O que esta desconhece é que ambos (Walter e Lídice) já nutriam um amor de anos, que nem se comparava com o “amor à primeira vista” sentido desde o dia em que foi assistir, com sua turma do colegial, a um ensaio no conservatório e se apaixonou perdidamente por aquele maestro. Assim, como toda novela, ciúmes, ambições, despedidas e tragédias são vivenciadas o tempo todo pelas personagens, deixando o leitor demasiadamente curioso com o desfecho.

De forma geral, a leitura dessa obra nos proporciona autoconhecimento, análise e senso crítico em relação a nós mesmos, nossas escolhas, nossa conduta. Ter admiração por uma pessoa não significa, necessariamente, estar apaixonado por ela, tampouco significa que o sentimento deva ser recíproco. As pessoas são únicas e especiais do que jeito que são e, ao se menosprezarem, demonstram fragilidade, imaturidade, falta de amor próprio – o que resume a personagem Vânia, que fez de tudo para substituir o insubstituível, se autoanulando o tempo todo.

O livro também remete a quão frágil é a vida e o nosso subconsciente, quando não nos importamos com nossa saúde mental – preocupados apenas com o outro, a vida do outro, o sucesso do outro: adoecemos. Fernanda, apesar dos traços físicos idênticos aos da irmã e possuírem quase que a mesma personalidade, demonstra crescimento no desenrolar da história, ganha vida ao mudar a si própria, ao querer encontrar seu lugar no mundo, até reconhecer quanto tempo perdeu em sua vida difamando a própria irmã;  esta até tentava se aproximar, mas as gêmeas não a reconheciam, não se orgulhavam dela, queriam transferir toda a atenção daquela para si mesmas, sem se esforçar, sem procurarem ser melhor, não saindo da inércia.

Portanto, se não for através da literatura, do objeto livro, dos enredos fictícios ou não, nos quais adentramos para viajar, nos conhecer, dialogar, crescer, expandir nossos horizontes e aprendizagens, não reconheço outra arte tão complexa e completa assim ao mesmo tempo. Conservatório é, sem dúvida, mais um mundo a ser descoberto.

Conservatório, obra de Evana Ribeiro.
Ipojuca/PE – 17 de dezembro de 2019.