O Nome da Rosa, de Umberto Eco
O Nome da Rosa, de Umberto Eco
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Umberto Eco (1932-2916) deixou-nos uma extensa e valiosa obra de semiótica e crítica literária. Em 1951 começou a estudar Direito em Torino. No entanto, contra os desejos do pai, estudou Literatura e Filosofia Medieval. Sólido nesses dois campos, construiu também fortíssima obra ficcional, da qual “O Nome da Rosa”, publicado em 1980, é seu texto mais conhecido. Que livro!
Trata-se de uma colagem descarada de textos, fontes, alusões, referências, tomadas num sentido absurda e anacronicamente contemporâneo. “O Nome da Rosa” é um serial killer ambientado na Idade Média. É uma denúncia a falsos problemas da racionalidade, circunstância que faz da obra uma permanente fonte de referências. O título nos remete à discussão medieval em torno das universais. Isto é, se o que vale mais são as coisas ou os nomes que damos às coisas. Há um texto antigo que defendia que os nomes seriam mais importantes do que coisas. Afinal, segundo esta tradição, no dia em que no mundo não existirem mais rosas, restará entre os homens a lembrança do nome da rosa... Em Shakespeare, Julieta lembrou para Romeu que os nomes que tinham de nada valiam, porque o que vale, a exemplo da olência das rosas, é a essência, da coisa, ou da pessoa.
Segundo Eco, o título veio “[...] quase por acaso e agradou [...] porque a rosa é uma figura simbólica, tão densa de significados que quase não tem mais nenhum”. Nesse livro, há inúmeras referências simbólicas de conteúdo interminável. Jorge de Burgos, o guardião cego da livraria, é homenagem explícita ao escritor argentino Jorge Luís Borges. Há também inegáveis semelhanças entre o conto A Biblioteca de Babel, de Borges, e alguns pontos temáticos do livro, a exemplo da recorrência a espelhos e labirintos, construções comuns na temática borgeana. O que não deixa de ser uma brincadeira, bem ao estilo de Borges.
William de Baskerville (nome do personagem principal) é referência a William de Ockham (importantíssimo filósofo medieval), bem como ao livro de Artur Conan Doyle, “Os Cães de Baskerville”, publicado em 1902, que deu início à série de Sherlock Holmes. Também há semelhança entre Adso (auxiliar de William) e Watson (auxiliar de Sherlock). Elementar...
E porque para Eco “os livros falam sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada”, o enredo centrou-se na Idade Média, em torno de uma série de assassinatos, colocando-nos uma dúvida sobre pretensa e supostamente perdida obra de Aristóteles. O livro revela-nos também final apocalíptico, marcado por um grande e esperado incêndio. Ainda segundo Eco, “imaginar uma história medieval sem incêndio é como imaginar um filme de guerra no Pacífico sem um avião de caça precipitando-se em chamas”.
Em “O Nome da Rosa” explora-se também um pormenor no contexto da discussão da racionalidade no ambiente medieval. É que o racionalismo qualificava uma ameaça à teologia. Por isso, partindo-se da premissa de que a razão melhor iluminava a compreensão do divino, defendeu-se que a racionalidade também era caminho para a comprovação da existência de Deus. William de Baskerville — aparentemente cético — porque racional, procura, a todo tempo, demonstrar a plausibilidade da experiência da fé.
Os fatos narrados no livro passam-se em 1327, num mosteiro beneditino. A narrativa se desdobra em exatos sete dias, divididos ordinariamente de acordo com a concepção de tempo dos mosteiros medievais: prima, sexta, moa, vésperas e completas. O mosteiro, localizado idealisticamente em algum lugar do norte da Itália, será o palco de uma importantíssima discussão a respeito da pobreza de Jesus. Iria se discutir se Jesus seria dono (ou não) das próprias roupas que usava. Os franciscanos defendiam que Jesus não era dono de seus trajes, o que explicitava visão absolutamente desinteressada de bens seculares, característica na ordem de São Francisco, tradição que remontava ao próprio santo, que pretendia perdoar sem ser perdoado, e amar sem ser amado. As demais ordens religiosas, especialmente a dominicana, insistiam na necessidade de a Igreja possuir bens na terra. O debate (aparentemente teológico) apontava para um confronto político, que se traduzia também numa discussão jurídica.
Os franciscanos eram vigiados pela Santa Inquisição. O Tribunal da Igreja remete-nos a uma primeira concepção de criminologia, centrada em textos que revelam autores “delirantes e perigosos, com gravíssimas fixações sexuais”. Refiro-me, especialmente, a “O Martelo das Feiticeiras” e ao “Manual dos Inquisidores”. Os interrogatórios da Inquisição eram baseados na lógica da “alquimia ou inversão valorativa dos fatos”. O inimigo era quem quer que pensasse de modo contrário ao dogma prevalecente. No caso, o grupo dos franciscanos, cujo representante no debate seria William de Baskerville. Fatos estranhos, no entanto, começam a se multiplicar no mosteiro. Vários mortos foram encontrados. Um aspecto comum parecia ligar todos os casos. Os mortos apresentavam a língua e um dos polegares manchados de tinta.
É a investigação em torno dos intrigantes crimes que conduz o eixo temático do livro. Tem-se a impressão também de que Adso contempla várias visões. Reconstrói-se um mundo imaginário da Idade Média, numa concepção historiográfica ostensivamente comprometida com ideário romântico, comum, principalmente, entre historiadores do Direito. O leitor desse belo livro tem a impressão de visitar a longa noite da história...
O inquisidor Bernardo de Guy, dominicano, é abertamente inimigo de William de Baskerville. Sua predisposição para condená-lo era objetivamente constatada pelo modo como as arguições eram conduzidas. Teimoso, William enfrentou o perigo da própria condenação, e demonstrou que os homicídios decorriam de leitura proibida de livro perdido de Aristóteles, no qual o estagirita pregava que ao homem não era proibido rir. Simplesmente. De alguma maneira já se intuíra que é rindo que castigamos os costumes.
A divulgação e o conhecimento deste pormenor do pensamento de Aristóteles, defesa do riso e da alegria, seria (no contexto do enredo de “O Nome da Rosa”) um perigo para a Igreja, que deveria engajar todas suas forças (principalmente junto à Inquisição) com o objetivo de evitar o conhecimento de tal livro. Os livros também matam, parece ser outra mensagem de Eco...
Adso de Melck sentiu-se atraído por uma moça que, como as demais moças do vilarejo, vendia-se aos monges, em troca de comida. Manteve relações íntimas com ela, circunstância que lhe provocou os horrores do pecado, do qual fora prosaicamente absolvido por William. Na cena final do livro, Adso foi obrigado a optar. Ou seguia-se mestre ou permanecia no local onde os fatos se passaram, e onde os familiares da moça viviam na mais absoluta miséria.
E porque a vida é uma opção permanente, e porque nunca sabemos quanto optamos corretamente, o dilema de Adso parece ser o problema de todos nós. Adso seguiu em frente, acompanhado William, relatando todos os fatos mais tarde na velhice. Um incêndio consumiu a biblioteca e o mosteiro. Talvez como uma epigramática referência de que os livros que conhecemos chegaram até por acaso, que não são necessariamente os melhores, e que há no processo de seleção dos referenciais de nossa cultura uma série de interferências, que jamais poderemos perfeitamente entender.
O livro de Eco foi levado para o cinema, em filme lançado em 1986, dirigido por Jean-Jacques Arnaud (que também conduziu Sete Anos no Tibet). O roteiro é de Andrew Birkin. Sean Connery interpretou o personagem principal, William de Baskerville. Cristian Slater fez o papel de Adso de Melk (o narrador da história, religioso aprendiz que acompanhava William). No filme também trabalham Elya Baskin (Severino), Ron Perlman (que interpretou o intrigante Salvatore, “que falava todas as línguas e não falava nenhuma”), Valentina Vargas (que interpretou a intrigante garota), Michael Habeck (no papel de Berengar), William Hickey (no papel de Ulbertino de Casale) e F. Murray Abraham (interpretando o terrível inquisidor Bernardo de Guy). O filme mantém a inteligentíssima intertextualidade do romance de Umberto Eco.