Sigmund Freud, o sonho da injeção de Irma e o livro de Sidarta Ribeiro
Sigmund Freud, o sonho da injeção de Irma e o livro de Sidarta Ribeiro
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Há quem sonhe estar viajando por uma estrada linda, em companhia de pessoas queridas, mas com um recôndito desejo duplo: querer estar feliz na viagem ou, opostamente, deixar o carro, a estrada e as pessoas queridas. Teima em descobrir para onde leva a estrada. Talvez saiba, mas quer errar o caminho. Há quem sonhe com cavalos mortos, que não consegue enterrá-los. Teima em descobrir quem é essa figura na vida em vigília. Talvez saiba, mas resiste. Há todo tipo de sonhos. Sonhos predicam na espontaneidade de nossos pensamentos. Não há intervenções de padrões morais impostos. Dos sonhos de uma pessoa pode-se intuir muito de sua natureza. É o padrão freudiano.
“A injeção de Irma” é o relato de um sonho que Sigmund Freud teve de 23 para 24 de julho de 1895, quando dormia no Castelo de Bellevue, perto de Viena. O comentário sobre o interessante sonho está no volume 1 do instigante “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), talvez o mais original de todos os seus trabalhos. Segundo Ernest Jones, “as conclusões fundamentais eram inteiramente novas e inéditas (...) isso se aplica tanto ao tema propriamente, o da estrutura do sonho, quanto a vários outros temas que surgem incidentalmente no livro”. O sonho da injeção de Irma talvez seja um dos sonhos mais famosos da história, ainda que bem menos conhecido do que os sonhos do faraó, interpretados por José, um fascinante relato bíblico.
No sonho, Freud observava as manchas acinzentadas na boca de uma mulher de nome Irma. Chamou em seu socorro o Dr. M., que confirmou o diagnóstico de infecção. Dois outros amigos, Leopold e Otto, aproximam-se dela. Otto aplicou-lhe então uma injeção de ácido de trimetilamina. O referido sonho contém certa evidência familiar da história da psicanálise. Nele figuram Oskan Rie (Otto, cunhado de Willhem Fliess, médico da família de Freud), Joseph Breuer (Dr. M), Ernest von Fleischel-Marxow (Leopold), bem como a própria Irma, suposta condensação de Emma Eckstein e de Anna Lichtein. Nos sonhos as pessoas se misturam.
O relato do sonho é também prova da qualidade literária dos escritos de Freud. O fragmento relativo ao sonho de Irma é antecedido por um pequeno preâmbulo. A análise que Freud fez do próprio sonho é um texto importantíssimo na teoria psicanalítica. Mostra-se como o passo essencial na concepção da importância dos sonhos, da análise da atividade onírica, e da percepção de que o sonho seja a realização de um desejo.
Irma simbolizava uma jovem viúva, que sofria de ansiedade. Do ponto de vista epistemológico, o sonho da injeção de Irma é um auto- experimento que marca toda uma disciplina, um modo de pensar: Freud fixou uma metodologia, que vai acompanhá-lo, em seus passos essenciais. O sonho da injeção de Irma pode assinalar uma certidão de nascimento da psicanálise. O relato é documento fundante da teoria psicanalítica.
Mais tarde, ao que consta, ao se referir ao local qual tivera o famoso sonho, Freud teria sugerido que ali se gravasse uma plaqueta de mármore indicando-se que naquele lugar o segredo dos sonhos fora revelado. Naquele local um enigma havia sido desvendado. Freud tornava-se o Édipo de nossos tempos. O preço, no entanto, foi caro, e o incesto, circunstância que tanto preocupou Freud, é a maldição que se abateu sobre Édipo. Mas desse mal Freud não teria padecido. Foi criticado por outros motivos.
No preâmbulo, Freud observou que tratava uma jovem senhora que mantinha laços cordiais de amizade com ele e com sua família. Por isso, observava, a relação de amizade o perturbava, como perturbaria a qualquer outro médico. Teria havido uma interrupção no tratamento de Irma, quando Freud recebeu a visita de outro médico, colega mais novo na profissão, que também esteve com a paciente. O médico teria observado que Irma estava bem, porém não totalmente curada. Freud reconheceu que se aborreceu com o tom das palavras do amigo. E justamente naquela noite sonhou com circunstâncias vividas naquele momento, o que nos indica também que sonhos carregam muito dos resquícios do dia vivido, tema que retomará no sonho da monografia de botânica.
Depois de relatar o inusitado sonho, fez um interessante comentário, no que se refere a eventual vantagem que o sonho teria, num contexto fático de problemas pelos quais passava, e que certamente influenciaram o conteúdo do que fora sonhado. Freud passou a interpretar sistematicamente o sonho, desde um ocorrido em um salão. Para Freud, o salão — no qual o sonho se passava — decorria da proximidade do aniversário de sua mulher, para o qual havia previsão de uma festa, na qual receberiam convidados. Por outro lado, indicando certa falibilidade do método, confessou que não conseguia definir exatamente os porquês que Irma sentia dores na garganta, abdômen e estômago.
Há vários significados nos sonhos, indicando que há motivos e causalidade na chamada atividade onírica. Pode-se explicar (ou tentar aplicar) quase tudo que se recorda. Freud insistiu no fato de que o sonho carregava uma grande ira dele para com o amigo, que recorrentemente apareceu no sonho de Irma. É o que se percebe, por exemplo, na avaliação feita a respeito à observação de que as injeções utilizadas no sonho não poderiam ser aplicadas de forma impensada.
Para Freud, o sonho representava um estado de coisas específico, tal como ele desejava que fosse. Por isso, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi o próprio desejo. Queria comunicar - - ainda que para si mesmo - - a situação pela qual passava. É justamente este o núcleo do conceito freudiano da interpretação dos sonhos, vistos menos como uma circunstância aleatória e inevitável, e mais como a concreta realização de uma vontade, a exemplo da vontade que Freud tinha de acertar contas com o amigo, por conta de suas opiniões relativas ao tratamento de Irma.
O relato do sonho de Irma marca a definição de que o sonho deva ser identificado como a realização de um desejo. Embora, não há, por parte de quem sonhe, um acesso direto ao sentido do que foi sonhado. O registro do sonho, e de sua interpretação, qualificam passo seminal na tradição cultural ocidental em geral e na tradição psicanalítica em especial. Para Sigmund Freud os sonhos descarregam desejos, realizando-os de alguma maneira. A constatação pode nos permitir, entre outros, que consigamos captar vontades mais inesperadas que carregamos, ainda que não reveladas, por sonhos também nunca antes sonhados.
Nesse tema fascinante dos sonhos há um novo livro nas livrarias que exige imediata leitura. Vale a pena parar tudo. Deixar de lado as outras leituras. Refiro-me ao trabalho de Sidarta Ribeiro, “O Oráculo da Noite”. Ribeiro retoma a tradição freudiana, com exuberante conhecimento de neurociência, literatura, psicanálise e história. Os pesadelos tem que sumir. O medo de dormir tem que passar. E a paz da noite deve voltar à casa de um menino (que somos todos nós), cuja simbologia dos sonhos dá início ao livro. Freud e Sidarta Ribeiro confirmam que na história do pensamento as novas invenções são quase sempre novos erros, com os quais sempre aprendemos.