Foucault e a História da Loucura

Foucault e a História da Loucura

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Michel Foucault (1926-1984), um autor difícil, mas instigante, criticou formas de exclusão e de opressão. Aluno de Louis Althusser e de Mearleau-Ponty, Foucault tornou-se conhecido no fim dos anos de 1960, como membro da “gangue dos quatro estruturalistas”; estava com Lacan, Barthes e Lévi-Strauss. Uma década mais tarde, Foucault alinhou-se aos novos filósofos que haviam se afastado do marxismo e do maoísmo. É autor central na discussão dos problemas de nossa época em vários campos, da epistemologia para psicanálise, da historiografia para a estética, das teses de biopoder para a criminologia. Nos últimos anos de sua vida, Foucault flertou com o estoicismo e explorou possibilidades de uma nova ética.

Em História da Loucura na Idade Clássica, tem-se oportuníssima crítica a um tipo de criminologia que exclui e que persegue loucos, feios, mestiços e pobres. Trata-se de texto importante que estimula reflexões sobre crime, criminosos e vítimas, nesses tempos de tanta falta de paciência criminológica.

Nesse livro Foucault apresentou inusitada pesquisa sobre a exclusão social dos supostamente insanos. Começou o livro lembrando a “stultifera navis”, a nau dos loucos, e a exclusão que tais navios realizavam, vinculando comparações com os leprosários e com o regime de reclusão que alcançava esses doentes.

Cada época tem suas doenças, seus doentes e seus taumaturgos. Lembrou-nos Foucault que a lepra fora substituída pelas doenças venéreas, e que todos os doentes reclusos viviam sob a tutela do medo e do horror. Ainda sobre a stultifera navis, escreveu que “um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” Uma observação aparentemente estilística invoca percepção da escrita da história. Usando os verbos no indicativo presente, modo que os gramáticos nominam de presente histórico, Foucault transferiu o tempo pretérito para nossa contingência atual, quebrando barreiras temporais de narrativa. De acordo com Paul Veyne “a intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários”.

Foucault percebeu na loucura, enquanto artefato do pensamento humano excludente, uma fonte de dilaceramentos, canto que esconde uma “abafada consciência trágica” que não deixou mais de ficar em vigília. Analisando a loucura em Erasmo, em Cervantes e em Shakespeare, Foucault constatou que a loucura ocupa sempre lugar extremo no sentido de que não há recurso. A loucura seria caminho sem retorno. Encarcerado, o louco fica sob o jugo de soberania quase absoluta, de jurisdição sem apelações, sob a mira de um direito de execução em relação ao qual nada pode fazer, sob a tutela e vontade do diretor de um hospital geral.

No mesmo lugar coloca-se o miserável, a quem se rejeita a outorga de personalidade moral. Desenvolveu-se um mundo correcional, repleto de terapêuticas que revelam paisagens imaginárias, que dão o pano de fundo a convergência operacional entre medicina e moral. A loucura passa a referenciar-se e a projetar-se também nos sistemas obrigacionais.

Foucault também estudou a mania e a melancolia. Quadros patológicos contemporâneos sugerem equivalência com estados de psicose maníaco-depressiva ou de bipolaridade. Acréscimos e deficiências de autoestima indicam, na teoria psicanalítica contemporânea das neuroses, os referenciais de depressão e de mania, que Foucault identificou em autores antigos, com alusão a complexo conceitual que transita do mito da química para uma verdade dinâmica do sofrimento pessoal.

A demência é fantasma que nos ameaça. A desrazão é penalidade que decorre do não alinhamento (voluntário ou não) com os protocolos do mundo racional. A desrazão seria também um prêmio pelo esforço centrífugo de não adesão (também voluntária ou não) à racionalidade que caracteriza nossa tradição ocidental.

A loucura alimenta um apartheid criminológico, que também conhece muitas outras versões. Refiro-me a certo darwinismo social (ainda que otimista), a uma tentativa de legitimação da exploração em Spencer, ao racismo de Gobineau, à estúpida tese da degeneração mestiça em Benedit Augustin Morel, à teoria da degeneração em James-Crowles Prichard, à diabólica tese do enfeiamento de Franz-Josef Gall.

Neste último caso, segundo um criminólogo argentino, Eugenio Zaffaroni, entabulou-se sinistra lógica que afirmava que a fealdade seria um desvalor estético enquanto a maldade seria um desvalor ético. O auge de tais teses ocorreu com a propagação do positivismo spenceriano de Cesare Lombroso, para quem o criminoso seria representante de espécie humana cujo ciclo de evolução materna não se completara. No Brasil, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), professor de medicina legal na Bahia, crítico feroz de qualquer forma de miscigenação, defensor de formas mais hediondas de exclusão social.

As críticas de Foucault se dirigem a uma criminologia baseada na exclusão, defensora de apartheid criminológico, que devemos combater, recorrentemente. Nesse sentido, estimulante o humanismo que marca suas ideias, firmes na denúncia de todas as formas de opressão e de exclusão, antigas e contemporâneas.

Os cânones da dignidade da pessoa humana, que defendemos intransigentemente, não pactuam com fórmulas ofensivas de exclusão e de perseguição. A crítica filosófica é importante instrumento de conscientização na luta pela libertação humana no combate sistemático a instâncias ideológicas opressoras.

A História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault, é livro provocante, que desafia o leitor, no sentido de que entendamos que boa parte de nossos problemas não estão na história, mas em nós mesmos, porque, afinal, somos nós que escrevemos nossas histórias, fixamos nossas opções e escolhemos nossos destinos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 30/12/2019
Reeditado em 30/12/2019
Código do texto: T6830004
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