Jorge Luís Borges e o tema do herói e do traidor
Jorge Luís Borges e o tema do herói e do traidor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Há diferenças substanciais entre herói e traidor? Há desconfianças, ou confirmações, de que heróis foram traidores, ou de que traidores teriam sido efetivamente heróis? Ou, no limite, heróis e traidores se diferenciariam apenas por uma questão de escala, nem qualitativa, e nem quantitativa? Isto é, não seria apenas a narrativa que faz heróis e traidores? Quem é herói? Quem é traidor? Há igualdades? Há dissemelhanças?
Essas são algumas questões colocadas por Jorge Luís Borges (1899-1896) em O Tema do Herói e do Traidor, conto de 1944, no qual Borges nos apresenta uma teoria da narrativa histórica. O conto enfrenta um problema historiográfico, respondendo também com uma hipótese de apropriação literária. Vejamos.
Por comodidade narrativa (a expressão é de Borges) o enredo desse pequeno conto desdobra-se na Irlanda, em 1824. Mas poderia ter ocorrido em qualquer outro lugar, ou em qualquer outra época. Ryan, neto de Fergus Killpatrick, herói nacional, líder revolucionário, assassinado ao momento em que tomava o poder, pesquisava sobre o avô, ao ensejo do centenário da revolução em seu país.
Borges comparou Killpatrick com Moisés. O líder dos hebreus, Moisés, o salvo das águas, chegou a ver a Terra Prometida, entretanto não conseguiu lá pisar e governar. Killpatrick conduziu a revolução, porém não chegou a governar, foi assassinado em circunstâncias enigmáticas. Nesse enigma, há muita especulação para teorias da história e das narrativas históricas. Quem conta a história?
Killpatrick foi assassinado em um teatro, em circunstâncias muito parecidas com o assassinato de Lincoln. Ao leitor não pode escapar que Lincoln foi assassinado muito tempo depois, ao fim da guerra civil norte-americana; tem-se, assim, uma pista falsa, plantada pelo escritor argentino. Killpatrick, a exemplo do que ocorreu com Júlio César, teria recebido uma carta, com notícia de sua morte, que se acredita que não leu, exatamente como o líder romano não leu o bilhete que comunicava sua morte próxima. Calpúrnia, a esposa de César, continua Borges, sonhou com a torre do senado que queimava, do mesmo modo que Killpatrick sonhou com o incêndio na torre circular de Kilvargan, onde nasceu.
Contava-se também que Killpatrick havia assinado, um dia antes de ser assassinado, uma sentença de morte, o que não era comum, dado seu temperamento pacífico. São muitos paralelismos. Há muitos paralelismos também com as cenas de Macbeth. Como? Por quê?
Ryan decifrou o enigma. Desconfiava-se que havia um traidor infiltrado no movimento. Killpatrick, então presidente, ordenou uma investigação. Provas contundentes e irrefutáveis comprovavam que o traidor era o próprio Killpatrick, o herói nacional. Não havia como se revelar tal fato para a população, que entusiasticamente apoiou a revolução. O presidente aceitou a culpa, concordou com a própria execução, como medida de expiar seu arrependimento. Firmou a própria sentença de morte, sem que se soubesse quem era o condenado. Tratava-se da sentença que firmou um dia antes do assassinato.
Não havia tempo para se organizar a execução. Pessoas próximas ao presidente, porém leais ao regime que instalaram, por comodidade, buscaram em Shakespeare enredos de assassinato de chefes políticos, e os colocaram em prática. Borges reconheceu que a literatura imita a vida real, mas registra que nesse caso o impossível ocorria: a vida real imitava a literatura. É a apropriação literária como resposta a um problema historiográfico.
Killpatrick aceitou a execução como um perdão. Vários atores participaram do enredo. Várias cenas de Macbeth foram plagiadas. O condutor das investigações publicou um livro que enaltecia - - ainda mais - - a memória do herói. Killpatrick era apaixonadamente lembrado em toda a Irlanda: e como herói persistia.
Essa narrativa contém uma poderosíssima reflexão em torno da construção do discurso histórico. É universal, porque se aplica a todas as circunstâncias. Entre nós, há muitos exemplos, e Calabar, figura contraditória da insurreição pernambucana é uma referência necessária. Calabar, herói ou traidor, foi retomado por Chico Buarque de Hollanda, para quem nesse Brasil holandês havia lugar tanto para o português, como para o banco de Amsterdam.
Borges nos convida a duvidarmos de todos os heróis e de todos os traidores. O convite é extensivo para que duvidemos de nós mesmos. Talvez porque constatou que nos traímos, o tempo todo. Como nos disse um maldito escritor italiano, quem tem a doença do ego, não se confessa a si mesmo. A história (onde desfilam heróis e traidores) responde perguntas de seu tempo. É um discurso do presente e não do passado. Porque o passado pode ser uma invenção, que nos serve como um guarda-roupas, no qual cabem todas as fantasias. Borges sugere que inventamos heróis e que fabricamos traidores, ou que, no fundo, somos todos iguais: tudo depende do ângulo de quem vê.