"Para que serve esse botão? Uma autobiografia", de Bruce Dickinson: um livro ótimo como biografia musical, mas que se perde quando tenta se vender como literatura de negócios e/ou de auto-ajuda

Livro "Para que serve esse botão? Uma autobiografia" do cantor inglês Bruce Dickinson, vocalista da banda de heavy metal Iron Maiden. Na obra, Dickinson conta fatos e episódios curiosos de sua vida, infância até o sucesso como astro do rock e empresário. Além da carreira musical, Dickinson possui uma trajetória bem-sucedida como piloto de avião comercial, atleta de esgrima e mestre cervejeiro. Também foi roteirista, escritor e apresentador de rádio. É ainda historiador e palestrante. Uma pessoa com currículo ímpar e inusitado, convenhamos.

ESTRUTURA E MÉRITOS

O livro segue uma linha cronológica normal se iniciando, como esperado, com Bruce falando de sua infância. Nascido numa família de classe média, passou boa parte dessa fase com os avós, tios e outros parentes, alguns operários em minas da região, visto que os pais viviam viajando a trabalho. Entre eles, havia um padrinho que lutou na Segunda Guerra Mundial e contava histórias para Bruce. Daí, começou a surgir nele o interesse por aviação e que influenciou algumas letras de músicas famosas do Iron Maiden, tais como "Aces High" e "2 Minutos to Midnight". Ainda na infância, ao participar de um coral em sua escola, ao receber a visita de um referendo, este se aproximou de Dickinson e pediu para ele cantar mais alto. Após atender o pedido, o reverendo disse antes de ir embora: "você tem uma boa voz". Seria a primeira pessoa a reparar em sua voz. Dickinson é conhecido pela potência de seus vocais, tendo o apelido de "The Air Raid Siren" ("sirene de ataque aéreo"), algo que começou como insulto e virou elogio, conforme o livro também conta. Sobre esses pequenos episódios, Dickinson diz: "Da infância, nada se perde", ou seja, para ele, boa parte das bases que são responsáveis pelo sucesso, tem suas sementes plantadas ainda na infância.

De natureza rebelde, na adolescência, Bruce foi expulso de um colégio devido a uma pegadinha feita contra o diretor da instituição (colocou um carregamento de esterco na porta da casa dele). Conta como começou a se interessar por rock, que teve o interesse de aprender bateria (mas não insistiu), de como tocou em várias bandas até, enfim, chegar como vocalista numa banda maior: o Samson.

O Iron Maiden já era uma banda de sucesso quando Rod Smallwood, seu empresário, procurou Bruce Dickinson para convidá-lo a se juntar ao conjunto. O Maiden já havia lançado dois álbuns com o vocalista Paul Di'Anno, que foi demitido (Bruce não tece comentários sobre ele no livro). Por sua vez, Bruce vivia um período desinteressante no Samson. Foi, portanto, um casamento de interesses, com Dickinson deixando claro que queria liberdade para poder opinar, manifestar suas ideias.

Veio o sucesso estrondoso. Com o Maiden, Bruce se tornou uma referência no metal e a banda se tornou ainda mais conhecida mundialmente. Os dois primeiros álbuns gravados, "The Number of the Beast" e "Powerslave" entraram para a história como alguns dos melhores do gênero. Um personagem que merece destaque nesse processo é Martin Birch, produtor muito conhecido no universo roqueiro, que já havia produzido álbuns para o Deep Purple, Rainbow e Black Sabbath. Bruce atribui a Martin a importância da alma na produção da arte, visto que ele fez o vocalista repetir várias vezes a gravação dos primeiros versos da canção "The Number of the Beast", aparentemente simples mas que, devido à gravação, ganharam uma atmosfera e até uma teatralidade peculiares, que influenciariam todo o trabalho de Bruce nos anos seguintes.

Durante um período em que Bruce sentia uma certa apatia no Maiden, ele saiu em carreira solo, gravando álbuns interessantes, influenciados por suas leituras e pensamentos. Enquanto isso, o Maiden se arriscava com Blaze Bayley, um vocalista que tinha mais características de hard rock do metal propriamente dito, mas a quem Bruce dedica considerações simpáticas. Dickinson precisava da carreira solo para poder explorar tudo aquilo que ele queria, sem as amarras do Iron Maiden, que o limitavam. Foi essa falta de liberdade criativa que influenciou sua saída, por uns anos, da banda. Nem foram as brigas sendo que, o mais representativo episódio foi logo nos primeiros shows. Bruce estava acostumado, como vocalista, a ficar no centro do palco. Contudo, no Iron Maiden, esse espaço é ocupado por Steve Harris, baixista e líder, que tinha (e ainda tem) a mania de correr pelo palco. Isso gerou atritos que, por muito pouco, não acabaram em pancadaria.

É do período como vocalista de rock, seja no Samson, no Iron Maiden ou em carreira solo, que temos os melhores momentos do livro. Ele se envolve em episódios totalmente inusitados, conhecendo os tipos mais malucos, movido a bebedeiras (embora as drogas estejam presentes, ele não chegou a abusar delas, como outros roqueiros o fizeram). Acrescente ao relato o sarcasmo natural de Bruce e o resultado é hilário. Por sinal, é esse sarcasmo, junto com tais casos, que tornam o livro interessante. Dickinson possui um carisma nato para contar histórias, naquele típico humor inglês. Deve ser divertido tomar cerveja com ele num pub e escutar suas histórias.

Uma dessas histórias foi aqui no Brasil. O Rock in Rio de 1985, o primeiro de todos, tem um capítulo só para falar dele. Dickinson conta que os empresários brasileiros chegaram para eles e tudo que a banda pedia eles respondiam: "OK, faremos". Isso demonstra o quão interessados eles estavam no Maiden que, no festival, não tocou como banda principal (mérito que coube ao Queen do incrível Freddy Mercury). Bruce conta que nunca tinha visto tantas mulheres bonitas juntas (esperado) e que sofreu com a cerveja brasileira com nome de divindade hindu (também esperado). Tudo estava ótimo, exceto o som durante o show. Em determinado momento, gesticulando desesperado durante a apresentação, para o técnico de som, um brasileiro que certamente não entendia nada de inglês, Bruce acabou batendo a testa e se machucando. O sangue escorria pela testa. Em determinado momento, um integrante da equipe enviou uma mensagem de Rod Smallwood, pedindo para ele apertar o ferimento e sangrar mais pois "estava ficando ótimo na televisão" (a Rede Globo transmitia, ao vivo, o evento para o Brasil inteiro). No dia seguinte, a foto de Dickinson ensanguentado estampava os jornais. Segundo ele, esse show, apesar dos problemas, foi o que abriu as portas de um continente inteiro para o Iron Maiden.

Dickinson dedica vários capítulos sobre sua atividade como esgrimista, com ele tentando encontrar clubes para treinar nas cidades onde o Maiden tocava. Há capítulos sobre, é claro, sua carreira como piloto comercial, também aproveitando o período entre as turnês para se aperfeiçoar. Inclusive, o avião da banda, o "Eddy Force One", é pilotado por ele. A conclusão da faculdade de História, bem como a atuação como apresentador de rádio e, nos anos mais recentes, como mestre cervejeiro e palestrante de negócios, sempre se deu no intervalo entre as turnês. Há ainda alguns interessantes capítulos sobre técnicas vocais.

É importante citar também os capítulos onde Dickinson fala de sua experiência quando, em carreira solo, se arriscou e foi tocar com sua banda na cidade de Sarajevo, Bósnia, que estava sitiada, durante a guerra contra a antiga Iugoslávia. Nesse conflito, os sérvios promoveram uma verdadeira limpeza étnica, com todo tipo de crimes de guerra sendo cometidos. Nos anos seguintes, ele seria homenageado pelo gesto.

No final do livro, Dickinson fala de seu drama pessoal com a descoberta (e cura) de um câncer que atingiu sua garganta. Bruce não poupa detalhes ao falar de sintomas, do tratamento e dos efeitos colaterais provocados pela quimioterapia e medicamentos (problemas digestivos, intestinais).

PROBLEMAS COM MERITOCRACIA

O título do livro remete à curiosidade de Dickinson. Ele atribui a isso boa parte de seu sucesso. De fato, curiosidade serve como pontapé inicial. Porém, é na disciplina do treinamento que conseguimos melhorar e evoluir. Dickinson se destacou nas atividades onde ele treinou bastante. Como piloto, obrigatoriamente, ele precisou participar de inúmeras horas de simulador e voo. Como cantor, utilizava treinamentos e técnicas vocais para manter a voz potente. Como esgrimista, mesma coisa: treino e lutas com outros oponentes. Para escrever (livros, roteiros e, é claro, músicas), lia muito e fez faculdade de história. Até mesmo as bebedeiras ajudaram pois permitiram a ele desenvolver um gosto apurado que seria útil, na atualidade, como mestre cervejeiro. Bruce Dickinson deixa isso muito claro em seu livro por meio desses exemplos. Provavelmente, são esses dois pontos (curiosidade e disciplina) que, na visão de Bruce, o possibilitaram crescer.

Não tive ainda oportunidade de assistir alguma palestra dele voltada para o mercado empreendedor. Contudo, imagino e creio que esse seja o eixo fundamental de sua argumentação. A autobiografia de Dickinson serve sim para ele contar sobre sua experiência de vida, mas há um componente que tenta ser vendido: a de um case de sucesso, de uma pessoa que venceu na vida... e esse livro tem sido vendido dentro da realidade atual do cantor, que se tornou palestrante de negócios e empreendedor de sucesso no ramo cervejeiro. Portanto, esse livro não é apenas uma biografia musical, mas um livro de negócios que, como a maior parte desse gênero de livros, defende a meritocracia, ou seja, se eu me dedicar bastante, ser curioso e ter disciplina para praticar, o sucesso tende a vir, tal como veio para o biografado. Contudo, a coisa não é tão simples. Talvez, justamente por causa desse objetivo empreendedor subentendido, que o livro não aborde temas muito pessoais, tais como família e filhos, exceto o essencial e, é claro, a vitória sobre o câncer, que serve como fator de estímulo.

É importante ter em mente que "meritocracia" não existe! Sim, isso mesmo que você leu! O conceito de "meritocracia" surgiu pela primeira vez em meados de 1958, no livro "The rise of the meritocracy" de Michael Young. Tal livro era um romance distópico-satírico! Nessa distopia, onde a palavra tem conotação negativa, a sociedade se baseava em medições padronizadas da capacidade das pessoas, com base no QI e no esforço pessoal. Entretanto, os "sem mérito", ficariam para trás, relegados, ainda que tivessem suas capacidades, qualidades. Distopias devem ser consideradas como livros que alertam e, quando a sociedade caminha para algo do tipo, um alarme deveria disparar no cérebro de todos nós. Talvez, se tivéssemos lido mais George Orwell, não continuaríamos votando em políticos totalitários...

Enfim, tudo o que Bruce Dickinson coloca como experiência de vida, como um caso de sucesso, ainda que ele não utilize essa abordagem tão diretamente, deve ser vista com ressalvas. Muito do que Bruce se tornou teve como ponto de apoio a riqueza que ele adquiriu ao longo da carreira. É muito fácil ser empreendedor, de cerveja ou de qualquer coisa, quando você tem já um alicerce construído, uma base de patrimônio que te dá liberdade e tranquilidade para poder se arriscar e fracassar. A carreira literária de Bruce, por exemplo, nunca decolou. E se toda a carreira artística dele tivesse sido focada na escrita e não na música? Ele teria vencido ainda assim? É difícil saber. E se ele não tivesse tido uma família que o apoiou? E se ele tivesse nascido num país menos desenvolvido? É impossível falar de meritocracia quando não há igualdade de condições para todos. Portanto, a experiência de uma pessoa não pode ser considerada um manual para as demais. As pessoas pagam para escutar Bruce falar e há uma responsabilidade nisso. E, certamente, Bruce Dickinson, entre suas leituras, não deve ter lido esse citado livro de Michael Young, ainda que distopias façam parte de seu cardápio literário ("Admirável mundo novo", de Aldous Huxley, inspirou o álbum "Brave new world" do Iron Maiden).

Se queremos aprender empreendedorismo com Bruce Dickinson, devemos ter um olhar mais atento para o Iron Maiden em si. Na prática, a banda funciona como uma empresa, administrando um produto (as músicas), a marca (com mascote, inclusive), a logística (com avião próprio), as finanças. O "presidente" dessa empresa é Rod Smallwood. Ele que, de fato, administra o Iron Maiden. Abaixo dele está o "diretor financeiro" e, junto com Rod, está Steve Harris, baixista e líder, que seria o "diretor de produto", responsável pelos álbuns, ou seja, aquilo que será vendido para os fãs (os "clientes). Rod e Harris administram os "funcionários", ou seja, Bruce e demais músicos, dando-lhes certa liberdade (controlada) e rendimentos. O processo de "desenvolvimento de produto" do Iron Maiden segue um fluxo bem definido: compôr faixas, mixar, sair em turnê. Para cada uma das três fases, subprocessos são realizados dentro de um "gerenciamento de projeto", isolando a banda em algum lugar tranquilo para compôr, contratando bons profissionais para a mixagem, dando-lhes as diretrizes criativas e, por fim, negociando e controlando a logística das turnês que, frequentemente, passam por dezenas de países em todos os continentes. Terminado o processo, vem o "período de férias" com a família e para tocar as atividades paralelas (esgrima, cerveja, pilotagem, etc.). Passa o tempo, retoma-se o processo. Há mais empreendedorismo na análise profunda do Iron Maiden como instituição, do que na análise da autobiografia de Bruce Dickinson. Por sinal, se não existisse esse planejamento que permite férias para se dedicar a projetos paralelos, Bruce faria tudo o que fez? Difícil também dizer.

Enfim, amo o trabalho de Bruce Dickinson como músico. Sua autobiografia possui momentos excelentes, principalmente por causa do tom como tudo é abordado e contado, mas o livro deve ser visto como isso: um relato da vida de um metaleiro que viveu muita coisa inusitada. Quanto ao empreendedorismo e toda a pseudo-mensagem motivadora, ignore. O saldo é bem mais positivo do que negativo. Uma ótima literatura.

(DICKINSON, Bruce: tradução de Jaime Biaggio. Para que serve esse botão?: uma autobiografia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018, 1ª edição, 320 páginas. Título original: What does this button do?)

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Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 23/12/2019
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