O Tribunal da Quinta-Feira, de Michel Laub
O Tribunal da Quinta-Feira, de Michel Laub
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Em fevereiro de 1983, embarcando em São Francisco, com destino ao Brasil, depois de uma estada de dois anos, li no San Francisco Chronicle uma manchete que me chamou a atenção. À imagem de um homem magro e esquálido, escrevia-se que o câncer gay matava mais e mais. Era uma referência à AIDS, então associada com o sarcoma de Kaposi, um câncer de pele, identificado inicialmente com manchas roxas, vermelhas ou marrons. Descritas pela primeira vez em Viena, em 1872, pelo médico húngaro Moritz Kaposi, essas manchas significaram aviso de morte, ao longo da década de 1980. No filme Filadélfia, de 1993, dirigido por Jonathan Domme e com Tom Hanks no papel principal, essas manchas ainda sinalavam um fim próximo. Há algo de Caio Fernando Abreu nesse tempo triste também.
A proximidade do fim, mais do que a AIDS propriamente dita, é o pano de fundo de O Tribunal da Quinta-Feira, de Michel Laub, misto de relato geracional com thriller policial. A narrativa é dissolvida nos enigmas do acaso; na fala do narrador, o publicitário José Victor, “(...) as encrencas de verdade tendem a vir de coisas que nunca passaram pela nossa cabeça”. O narrador protagoniza de fato uma encrenca, termo bem brasileiro que sugere confusão e complicação, e que vem de onde menos se espera. Essa é a grande surpresa do livro, que certamente não posso revelar aqui. E também não posso revelar essa página reveladora. Paciência. Leiam. Vale a pena.
O enredo retoma intuitivamente o argumento da tragédia clássica, cujo arquétipo mais comum é a personagem de Sófocles que matou o pai e se casou com a mãe. Édipo não sabia o que fazia. José Victor, nessa mesma linha, sabia muito menos sobre seu melhor amigo, Walter, do que imaginava saber. A diferença entre Édipo e José Victor é de conteúdo, e não de forma. Ao contrário de Édipo, José Victor não carregava uma maldição de família. José Victor carregava uma maldição geracional, e teve de enfrenta-la. Ao contrário de Édipo, não furou os olhos para não ver mais as desgraças do mundo. É em sua trajetória que José Victor construiu uma nova luz para perceber a sua circunstância (que é a nossa circunstância). São sinais trocados.
Em O Tribunal da Quinta-Feira são poucas as personagens. José Victor (narrador, publicitário), Wagner (amigo de José Victor, soropositivo - - expressão que a narrativa problematiza de modo inusitado - -), Teca (arquiteta, esposa e além disso ex-esposa do narrador), Dani (a estagiária e depois namorada e quem sabe depois redentora do narrador). Há também uma personagem imaterial, que faz as vezes de sujeito oculto e inexistente, que é a própria doença, e que a partir da metade do livro segura a narrativa e o leitor.
O entorno da narrativa também é contemporâneo. O perigo real que primeiramente assusta o narrador é representado por mensagens de correio eletrônico alcançadas por Teca. O conteúdo das conversas entre José Victor e Wagner desaba em vingança, de onde a metáfora e o ritual do Tribunal da Quinta-Feira. Michel Laub também joga luz no meio publicitário, ao cuidar de uma agência em vias de ser comprada por um grupo internacional. Os efeitos da internet e das redes sociais nesse ramo negocial são explorados, ainda que sutilmente.
São muitos os temas que o livro enfrenta: amizade, casamento, desilusão com o casamento, perde de interesse no parceiro, interesse em outro parceiro, possibilidades de adultério igualitário, assédio, opções de sexualidade, conflitos geracionais, espaços comunicacionais, oportunidades de trabalho, perdão, esquecimento, vingança, julgamentos morais e tantos outros.
São 78 capítulos, alguns de poucas linhas, enxutos, de leitura fácil, em 180 páginas que são devoradas com gosto. O autor é de Porto Alegre, vive em São Paulo e alguns de seus títulos foram traduzidos e publicados no exterior. Representa a renovação na literatura nacional, que se desamarra dos cânones das histórias oficiais de nossa escrita.
Há passagens líricas e de muita sensibilidade. Nas palavras do narrador, “um relacionamento já é tão frágil de qualquer modo, e sempre chega o dia em que o desejo diminui, e o encantamento dá lugar a outra coisa, a medida de dor e incomunicabilidade que duas pessoas aguentam ao tentar construir algo sólido sobre a terra que pede para ser arrasada (...)”. É essa a possibilidade e a proximidade do fim. O Tribunal de Quinta-Feira é uma seríssima reflexão sobre as fragilidades de nossa experiência, que refutamos, mas que ao mesmo tempo desesperadamente nos apegamos, porque é como lutamos contra o que mais tememos: o fim.