Fernanda Montenegro, prólogo, ato, epílogo
Fernanda Montenegro, prólogo, ato, epílogo
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Aos 90 anos Fernanda Montenegro relatou sua trajetória em livro de memórias (em colaboração com Marta Góes). As passagens revelam muito de nossa história política, mais ainda de nossa história cultural e muito mais ainda da vida de uma grande lutadora. É um livro encantador que descreve uma personagem (no sentido quase grego do termo) também absolutamente encantadora. Nascida em 6 de outubro de 1929 Fernanda Montenegro é testemunha de todas as metamorfoses e transformações pelos quais passou o Brasil. Para o bem, e para o mal.
O livro de Fernanda pode ser lido como um livro de história. Quanto à República Velha, a narrativa sobre os bisavós, que da Sardenha tentaram a vida no Brasil, substituindo escravos no trabalho do campo. Fernanda comparou o trem que levou os parentes imigrantes para Minas com o trem que carregava os judeus para os campos de concentração. Realismo. Não há aquela enervante dulcificação da imigração e dos imigrantes, típica das historietas épicas e cheias de apologia. Do mesmo modo, a história dos avós, que passaram por vários lugares do Brasil, é marcada por um realismo que mostra pessoas autênticas cuja intensidade com que enfrentaram as dificuldades beira a teimosia. Não se entregavam.
O esforço dos pais, Carmen Nieddu e Victorino Esteves da Silva, que se inserem nos subúrbios do Rio de Janeiro, na segunda década do século XX, é o testemunho das transformações urbanas, a exemplo do bairro de São Cristóvão, que deixa de pertencer a uma elite ligada ao Imperador e passa a ser espaço de operários e imigrantes. Fernanda é predicado humano de um Rio de Janeiro que se transformava, muito além das reformas de Pereira Passos, no início do século, e no centro da cidade.
Quanto à era Vargas, Fernanda narra sua passagem pela rádio do MEC, nos tempos de Gustavo Capanema, quando começou a carreira. Deixou o nome de batismo, Arlete Pinheiro. Conta-nos que escolheu Fernanda, como uma referência aos romances do século XIX, onde o nome é comum. Conta-nos que escolheu Montenegro, em alusão a um médico de subúrbio, que sempre salvava alguém da família. Com humor, conta-nos que a escolha do nome da filha, Fernanda, foi saudada pelo marido, Fernando, como prova de que na família haveria finalmente uma Fernanda verdadeira. Essa passagem, e os trocadilhos, pelo menos para mim, comprovam a liberdade intelectual das pessoas do teatro. Queria ser assim!
Quanto aos tempos do populismo, Fernanda conta-nos uma visita feita no Palácio das Laranjeiras, que era a sede do governo federal no Rio, e já existia Brasília. Ao lado de um grupo de artistas foram recebidos por Maria Tereza Goulart, a linda e intrigante esposa de Jango. Tereza pretendia um papel em uma pequena peça, com fins beneficentes. Percebe-se que estava só, e que precisava dimensionar uma vida própria também. O relato da visita é tocante. Fernanda mostra-nos como olhar e perceber o outro. Atores e atrizes vivem da representação do sofrimento e da alegria do outro. São universais. Representar talvez seja o sinônimo de transcender.
As páginas que cobrem a ditadura são as mais esperadas. Os ataques da censura, o horror do AI-5, o modo como eram obrigados a mudar praticamente todo o enredo de várias peças, palavrões que eram cortados. Nesse último caso, há uma passagem do enfrentamento de Ziembinski, que argumentava com os censores no sentido de que o corte de uma palavra (ainda que palavrão) mudaria toda a estrutura de uma personagem. Aqueles brutos não entendiam nada. Nesse mesmo passo, Fernanda nos conta a devolução do prêmio Saci ao jornal O Estado de São Paulo. Recusou-se a assinar um documento partidário e sectário. Redigiu texto próprio, no qual defendia a liberdade de expressão. Era no que acreditava.
Na redemocratização, há a fortíssima lembrança de Dulcina de Morais, e a perda do apartamento dessa importante figura do teatro, em Brasília, na Asa Sul, nos tempos de Collor. Vê-se como a política tradicional trata os artistas. Dolorido. A recusa ao convite para o Ministério da Cultura, feito por José Sarney, e as esperanças vividas no fim da ditadura, dão ao livro um fôlego de otimismo. Que não durou muito. Negando o convite, Fernanda não quis que a sapateira fosse além do sapato. Coragem.
Além da história, contada por narradora participante, no livro de Fernanda Montenegro há intensa memorialística da cultura nacional. Ítalo Rossi, Paulo Autran, Bibi Ferreira, Sérgio Britto, Grande Otelo, Cacilda Becker, Walmor Chagas, entre tantos e tantos outros, passeiam pelas páginas, como personagens de uma obra conjunta e harmoniosa. É muita informação. É história oral. É reminiscência de primeira mão. No mínimo, vale a leitura do livro, as memórias das filmagens de “Eles não usam black-tie” e a famosa cena do feijão, ou a escolha do ator mirim na Central do Brasil, pelo diretor Walter Moreira Salles, com o episódio no engraxate no aeroporto.
Para quem estuda artes cênicas, há excertos pedagógicos: Fernanda Montenegro aboliu o ponto. Sua carreira transita do desuso da prosódia portuguesa dos atores do tempo de Procópio Ferreira para os novíssimos tempos da televisão e do cinema. A conquista do Leão de Ouro em Veneza, o quase Oscar em Los Angeles, os primeiros tempos da televisão, não se consegue parar de ler. Há também problemas complexos de fundo político e ideológico, a exemplo das relações profissionais com Nelson Rodrigues, o reacionário cujo talento era incomparável. Nosso grande dramaturgo referia-se a Fernanda Montenegro como a “musa sereníssima”.
Uma história de amor e de cooperação dá o pano de fundo de uma obsessão pela representação cênica: os 60 anos que Fernanda conviveu com Fernando Torres, o homem-criatura, uma categoria nova, que nos impele a lutarmos por nossos ideais. Fernando deixou o curso de medicina, no terceiro ano, para viver no teatro. As últimas páginas do livro, que descrevem sua doença e sua morte, sugerem que para Fernanda amar é importante, e que o amor ainda é possível. Sem o amor, nada seríamos. Em algum lugar do livro se lê que pouco amor não é amor. Fernanda Torres ama intensamente os seus, a família, e a profissão, com uma intensidade desconcertante. É a grande lição do livro, nesses tempos de ódio e de indiferença.