O homem que sabia javanês, de Lima Barreto

O homem que sabia javanês, de Lima Barreto

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) viveu permanente estado de exclusão social, o que de algum modo justifica o alcoolismo crônico que o derrubou, tirando-lhe a vida ainda muito jovem. Lima Barreto faleceu com pouco mais de 40 anos; morreu praticamente junto com seu pai. Observador de ordem política da escravidão - ele mesmo descendente direto de escravos- Lima Barreto criticou a cultura oficial que ornava o Brasil dos bacharéis.

Lima Barreto provoca-nos sobre questões éticas, quando fins e meios tendem a se justificar mutuamente. Lima Barreto deslegitimou a mentira como mecanismo de ascensão social. Ele viveu à margem, amanuense no Ministério da Guerra, com salários que permitiam sobrevivência frugal, situação que se agonizava com a necessidade de cuidar da família, sustentando o pai (que sofria de demência aguda) e os irmãos. Em algum momento Lima Barreto questionou se haveria legitimidade em se construir carreira com fundamento em uma mentira. Ele percebia nos bacharéis trajetórias montadas a partir de bases pouco sólidas.

O Homem que Sabia Javanês, parece-me, é conto que denuncia este estado de coisas. O narrador, Castelo, relata a um amigo (Castro), em uma confeitaria, como pregava peças contra “às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”. Narrava também que certa vez em Manaus escondeu a qualidade de bacharel, “para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho”. Castelo trabalhava no serviço diplomático, chefiava um consulado.

O modo como alcançou a posição é o mote que Lima Barreto usou para denunciar o bacharelismo. O artifício de uma mentira — Castelo não sabia a língua exótica que um dia se propôs a ensinar — foi o ponto de apoio para que obtivesse posição de cônsul. Confessou ao amigo que foi professor de javanês. Acrescentou que foi nomeado cônsul justamente por isso. Contou que quando chegou no Rio de Janeiro vivia na miséria, fugindo das casas de pensão que lhe cobravam alugueis atrasados.

Foi quando leu anúncio no Jornal de Comércio, que dava conta de que alguém necessitava de um professor de malaio. Imaginou que se tratava de ocupação para a qual não haveria muitos pretendentes. Enviou uma carta ao jornal, oferecendo-se para a vaga inusitada que se abria. Continuou estudando a exótica língua da Oceania; não se dedicou com tanto afinco ao alfabeto e às sutilezas do idioma, tal como se entrava à bibliografia e à história literária da Ilha de Java.

Com sinceridade, descreveu o caminho até o empregador, relatando as dificuldades passadas, especialmente relativas aos quatrocentos réis da viagem. Castelo informou que logo em seguida chegou o dono da casa, um pouco atrasado. Tratava-se de um ancião. Teimosamente (coisa peculiar de velhos, segundo Castelo), o aluno queria saber onde o professor aprendeu javanês. Castelo observou que não contava com aquela pergunta. Disse que imediatamente arquitetou uma mentira. Teria falado que o pai era javanês, tripulante de navio mercante, que se estabeleceu nas proximidades de Canavieiras, na Bahia, como pescador; que teria se casado, e que prosperou. Foi com o pai que aprendeu javanês, explicou-se Castelo.

O aluno era da nobreza. Tratava-se do Barão de Jacuecanga. Uma estória curiosa justificaria o interesse no estudo de língua tão pouco falada por estas bandas, e de utilidade questionável. O velho então explicou a Castelo porque queria aprender javanês. Queria traduzir um velho livro de família. Castelo notou que “os olhos do velho se tinham orvalhado”. E observou que depois de enxugar discretamente os olhos, o Barão lhe perguntou se queria ver o livro. Depois de chamar o criado, e explicar que havia perdido todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, e que esta última tinha apenas um filho, “débil de corpo e de saúde frágil e oscilante”, ordenou que lhe trouxessem o cartapácio.

Castelo dissimulou que leu as informações em inglês que havia no livro. Contratou condições, preço e hora. Comprometeu-se a fazer com que o velho “lesse o tal alfarrábio antes de um ano”. As aulas começaram. O ancião não era muito diligente. Pelo contrário, preguiça e displicência pareciam ser as características de estudante. Castelo observou que levaram um mês com metade do alfabeto. O aluno aprendia e desaprendia. A filha e o genro do Barão não se preocupavam com as aulas. Pelo contrário, alegravam-se com o fato de que o Barão se divertia. O genro, aliás, impressionava-se com o professor de javanês. Dizia que aquilo era um assombro.

O compromisso com eventual verdade foi definitivamente rompido quando Castelo revelou que nada sabia de javanês (o que o leitor já sabe desde o início), mas que compôs histórias tolas, a título de traduzir o livro, e que o velho acreditava em todas elas. O bote foi dado. A partir do genro do Barão, Castelo teria conseguido se aproximar da vida diplomática. Trata-se do momento mais significativamente crítico do conto, na medida em que Lima Barreto indicou as linhas gerais que marcaram a entrada de Castelo para o serviço diplomático. A diplomacia era o sonho de muitos intelectuais, que disporiam de tempo para dedicação exclusiva ao estudo e às atividades literárias.

Castelo estava definitivamente empregado. Observou ao amigo que nada sabia de javanês, e que representaria o Brasil num congresso de sábios. O Barão havia morrido um pouco antes. O livro escrito em javanês ficou com o filho, que o deixaria para o neto. Castelo foi brindado no testamento do aluno, com alguns benefícios materiais. Continuava estudando as línguas malaio-polinésias, porém confessava que não havia forma de as aprender. Comprava livros, assinava revistas. Era apontado nas ruas como o homem que sabia javanês.

Contou ao amigo que descrevia a ilha de Java com o auxílio de dicionários, com alguns livros de geografia, que citava o tempo todo. O amigo perguntou se alguém duvidara do conhecimento que Castelo teria do javanês, se já teria passado por algum apuro. Castelo ainda contou sua participação no encontro de sábios. O professor de javanês estava entre os eruditos, era especialista em assunto hermético, e de conhecimento reduzido a um pequeno grupo de iluminados.

Castelo não se arrependia de tudo que viveu, e pelo que passou. A opção para o ensino de javanês, uma língua que desconhecia, fora a alternativa para a sobrevivência, para que se livrasse das agruras na cidade-grande. Fez-se como professor de javanês, língua que ninguém conhecia. O Homem que Sabia Javanês é denúncia contra bacharelismo que não tinha limites para que se alcançasse posição social de relevo. O truque usado por Castelo rompe com concorrência natural que deveria reger as relações humanas.

O relato do Homem que Sabia Javanês é autobiográfico na medida em que o autor se vê como quem quer que tenha sido prejudicado com os meios que Castelo usou para alcançar o cargo público que detinha. Não se trata de autobiografia, no sentido de que Lima Barreto se retrataria em Castelo, evidentemente. O conto é autobiográfico, Lima Barreto se via como membro de qualquer sociedade que desprezasse a meritocracia, em favor do apadrinhamento.

Poder-se argumentar que Castelo não causou mal a ninguém, e que até foi importante no resgate histórico do velho Barão, que morreu acreditando ter cumprido a promessa de traduzir o livro que lhe servia de amuleto. Castelo teve grande trabalho em sustentar a mentira. Quando indagado a respeito de onde aprendeu javanês, inventou um pai marinheiro que passara pela Bahia. Teria de se lembrar frequentemente da trama, correndo o risco de ser desmascarado, o que poderia ter acontecido com a necessidade de intérprete para um marinheiro preso no Rio de Janeiro, não fosse a autoridade diplomática holandesa.

Ao denunciar o homem que sabia javanês Lima Barreto exprimia sua revolta. Para isso também serve a literatura. Intelectual, porém com possibilidades limitadas de ascensão social, por conta das origens e da ascendência escrava, Lima Barreto foi preterido inúmeras vezes. Não conseguiu a imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Jamais foi lembrado para posto no exterior. Mofou como amanuense em repartição pública que odiava. Enquanto isso, muitos professores de javanês atendiam congressos e representavam o país no exterior. Quando voltavam, eram recebidos com júbilo. Lima Barreto, vencido pelo alcoolismo, morreu num manicômio.

Se os fins justificam os meios, a premissa legitimaria a estratégia de Castelo. Se do ponto de vista kantiano, a verdade o é apenas para quem a merece, não se saberá se o velho Barão teria direito de não ser enganado. Mas se a verdade é imperativo para convivência e igualdade de chances, o Homem que Sabia Javanês inscreve-se no panteão nacional que dos anti-heróis marcados pelo mau-caráter. E são muitos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 07/12/2019
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