"Casa de bonecas" de Henrik Ibsen: motivada por um drama real, peça excelente é um marco da literatura produzida na primeira onda do feminismo
Livro "Casa de bonecas", peça de drama em três atos escrita pelo norueguês Henrik Ibsen em 1879. Representada, na época, em diversos teatros escandinavos, a peça causou polêmica nas sociedades patriarcais e conservadoras. A edição que tenho em mãos foi traduzida do inglês, por Cecil Thiré, e publicada pela Abril Cultural no início da década de 80. Thiré, anos antes, estreou como diretor teatral justamente com a adaptação dessa peça, que tinha Tônia Carrero, sua mãe, no papel da protagonista.
Na obra, somos apresentados a Nora Helmer, uma mulher que vive uma vida aparentemente feliz: casada com Torvald Helmer, homem apaixonado, e que tem como tarefa cuidar dos três filhos. Nora se prepara para uma festa em sua casa, onde apresentará um número de dança para o marido. A rotina de frivolidades de Nora é ameaçada com o surgimento de Nils Krogstad, advogado que se dedica à agiotagem, a quem ela, no passado, solicitou um empréstimo, cujo dinheiro foi utilizado para custear uma viagem feita por Torvald, para cuidar da saúde dele. A negociação marginal foi feita sem o conhecimento de Torvald e, Krogstad, começa a chantagear Nora ameaçando contar ao seu marido sobre a negociação, visto que o empréstimo foi feito mediante uma fraude documental (uma assinatura falsa). Krogstad quer manter seu emprego no banco onde, coincidentemente, Torvald é o gerente. Nora entra em desespero com a possibilidade do marido, tão apregoado à lei, souber do ato ilegal, tendo em vista também que Torvald quer demitir Krogstad por atos não muito dignos cometidos por ele nas atividades do banco.
Ibsen escreveu sua peça em meio ao período conhecido como "primeira onda do feminismo". No início daquela mesma década, por exemplo, na Dinamarca, foi criada a Sociedade das Mulheres Dinamarquesas, primeira organização de luta pelos direitos da mulher. Na Holanda, pela primeira vez, uma mulher se matriculou numa universidade do país. No país vizinho da Noruega, a Finlândia, mulheres contribuintes conseguiram votar nas eleições municipais.
A análise desse período é importante para entender que foi um período onde as mulheres estavam em busca de direitos iguais. Entretanto, o caráter conservador e patriarcal imperava, principalmente na sociedade norueguesa. À esposa cabia apenas, quase sempre, a administração do lar, cuidando da casa e zelando pelos filhos. É bem possível que isso tenha influenciado Ibsen enquanto ele escrevia a peça. Contudo, não foi a influência e o fato motivador.
Ibsen tinha uma amiga chamada Laura Kieler. Também escritora, ela escreveu um romance chamado "Brand's daughters: a picture of life”, uma espécie de continuação de "Brand", peça de autoria do norueguês. Em meador de 1876, Victor Kieler, marido de Laura, teve tuberculose e o médico da família sugeriu uma viagem, uma estadia em um clima menos rigoroso, ao sul do país. Para custear o tratamento, sem o conhecimento do marido, Laura contraiu empréstimos com agiotas e, gradualmente, passou a ter problemas com eles pois ela, tal como a personagem Nora Helmer, também falsificou assinaturas para conseguir o dinheiro. Victor descobriu as falsificações para conseguir os empréstimos ilegais e pediu o divórcio. Os filhos foram retirados do convívio de Laura e, diante da pressão, ela acabou internada em um hospital psiquiátrico. Ibsen sabia de tudo isso enquanto escrevia "Casa de bonecas".
Se o drama da amiga foi a inspiração de Ibsen por que, então, a relação com o feminismo? Detalhar muito seria adentrar ainda mais no terreno dos spoilers, mas pode-se dizer que o desfecho da história de Nora chamou a atenção para o papel submisso e periférico das mulheres na sociedade. A encenação da peça provocou reflexões, reações, inclusive raivosas, quanto ao desfecho da narrativa.
Em seus livros mais famosos, pertencentes à fase realista de sua carreira (*), Ibsen buscava retratar a vida contemporânea tal como ela se apresentava, onde o indivíduo deveria ter, primeiro, obrigação consigo próprio, numa busca pessoal pela liberdade espiritual, fundamento primordial para a conquista da paz interna. Há, portanto, um individualismo em suas obras, que serviram de inspiração para escritores que vieram depois. Há também um apelo pelos conflitos psicológicos de seus personagens, que se sobressaem sobre as situações apresentadas. Todas essas características estão presentes em "Casa de bonecas".
Objeto de debates acalorados, "Casa de bonecas" foi um sucesso editorial imediato e tornou Ibsen conhecido mundialmente. Ao longo da história, a peça foi adaptada várias vezes para o teatro, cinema e televisão. Seja pelo modo envolvente de sua narrativa, seja pelo bom desenvolvimento de seus personagens principais, seja pela influência no que tange ao protagonismo feminino, "Casa de bonecas" é uma obra fundamental e necessária de ser lida. É uma das grandes peças do teatro universal.
(*) A obra de Ibsen se divide em três momentos principais: fase romântica (1850-1873), fase realista (1877-1890) e fase simbolista (1892-1899).
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