O plágio e o Pierre Menard, de Jorge Luís Borges
O plágio e o Pierre Menard, de Jorge Luís Borges
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Plágio é um tipo de fraude cujo conceito que radica em algum ponto do direito romano. Significava venda de escravo feita mediante uso de ardil. Contemporaneamente é o furto literário, a reprodução, total ou parcial de obra alheia, sem consentimento de seu autor ou sem indicação de fonte. Visão de certo modo complacente exigiria o socorro do conceito norte-americano de “fair use”, que consiste no direito de se usar material protegido por direitos de propriedade intelectual, para propósitos limitados, independentemente da autorização do autor. Na era digital o “fair use “é conceito seminal para solução de problemas fáticos que se avolumam, e que chegam ao judiciário, todos os dias.
Há também situações nas quais a imputação de autoria torna-se efetivamente impossível. Parece que todo mundo está plagiando todo mundo. É o caso, por exemplo, da adaptação de obras literárias. Versões cinematográficas de “O que é isso companheiro”, do livro de Fernando Gabeira, e de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” da obra de Machado de Assis, podem ilustrar a preocupação. Há muitos outros exemplos. Além do que, reconheça-se, há vezes nas quais a não identificação da fonte faz parte da intenção do autor, em jogo de imagens de muita recorrência, com pastiches e paródias, a exemplo do que Umberto Eco fez em “O Nome da Rosa”. A paródia seria exercício de liberdade de expressão, à luz do citado conceito norte-americano de “fair use”.
Há uma referência prosaica e bizarra ao problema do plágio (descarado) em Jorge Luís Borges, escritor argentino, no espirituosíssimo conto “Pierre Menard, o autor do Quixote”. Segundo Borges, Menard pretendia escrever o Quixote, mas não um novo Quixote, e muito menos um Quixote diferente do Quixote de Cervantes. Queria um Quixote exatamente igual ao Quixote de Cervantes, palavra por palavra. Um Quixote verbalmente idêntico ao Quixote de Cervantes. Tarefa quase impossível... Curiosidade intelectual ou realismo ingênuo? Ou, simplesmente, na escrita de Borges, uma ironia sem precedentes? No vocabulário dos leitores do escritor argentino, mais uma broma boorgeana. Enfrentemo-la.
Borges principia inserindo Pierre Menard no contexto hermenêutico do leitor, descrevendo o arquivo particular da curiosa figura, no qual havia muitas peças desconexas. Para Borges, aqueles que insinua¬ram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória. Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidis¬sem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Miguel de Cervantes.
Com o objetivo de escrever um novo Quixote, exatamente igual ao Quixote de Cervantes, segundo Menard, um proposito simplesmente assombroso, o autor pretendia conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a his¬tória da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes. Uma imensa tarefa. Quixotesca, talvez.
Para explicar ao leitor por que Menard queria compor justamente o Quixote, e não outro livro, mesmo que fosse do próprio Cervantes, Borges recordou sua experiência com a obra de Cervantes, ainda que falando em nome de Menard. Quixote seria, ao mesmo tempo, contingente e inecessário. Borges acreditava que o Quixote de Menard era certamente muito melhor do que o Quixote de Cervantes. Argumentava que a sutilidade de Menard fazia de seu texto algo mais sublime do que o texto de Cervantes, ainda que os dois textos fossem exatamente iguais. Palavra por palavra.
As comparações eram muitas. Nada obstante a identidade do conteúdo Borges insistia no fato de que o Quixote de Menard detinha uma riqueza infinita, mesmo que seus detratores (que poderiam ser muitos, Cervantes é leitor do cânon universal) assim não pensassem. E ainda que ao fim os dois textos fossem rigorosamente idênticos, Borges pretendia que o Quixote de Menard fosse superior ao Quixote de Cervantes; é que foram produzidos em contextos distintos, circunstância que os marcava e os contaminava. Borges observou que os estilos eram diferentes, embora concedendo que os textos fossem rigorosamente iguais. Menard era arcaizante, Cervantes, não. A diferença predicava da identidade.
Na análise inteligente (ainda que grotesca) de Borges, Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errô¬neas. Borges se refugiava dos problemas emocionais que vivia, dos conflitos familiares que enfrentava e de tudo que o cercava com um velho costume: escrevia.
O leitor de Borges poderia perguntar porque Menard não seguiu caminho menos tortuoso, limitando-se a simplesmente copiar o Quixote de Cervantes. E é justamente nessa emblemática questão que reside a definição do plágio. O autor (sic) do plágio age com dolo, revela a intenção de se aproveitar do trabalho intelectual de outra pessoa, engana a todos. É uma figura desprezível, um patife, um safardana, um indivíduo sem escrúpulos. Menard não queria copiar o Quixote de Cervantes. Queria, tão somente, escrever, a seu modo, o Quixote de Cervantes...
Na cultura midiática de nossos tempos, quando nos citamos e nos referimos, o tempo todo, e quando perdemos a noção do que é nosso, e do que é de nossa cultura, somos sempre um pouquinho algo de Pierre Menard. Porque admiramos Borges, ainda que não tenhamos tanto tempo para ler os dois volumes das aventuras do inesquecível cavaleiro de triste figura, Quixote, é que continuamos lutando contra moinhos de vento, na defesa da honra de nossas imaginárias dulcinéias...
Afinal, segundo Borges, o texto de Cervantes e o de Menard eram verbalmente idênticos, mas o segundo era quase infinitamente mais rico. Seguia Borges dizendo que o texto de Menard era mais ambíguo, no entanto, finaliza, a ambiguidade é uma riqueza. O leitor concorda com Borges?