O livro de Eclesiastes e a sabedoria dos antigos
O livro de Eclesiastes e a sabedoria dos antigos
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Pessoas nascem, pessoas morrem, mas o mundo continua sempre o mesmo. O sol continua a nascer, e a se pôr, e volta ao seu lugar para começar tudo outra vez. O vento sopra para o sul, depois para o norte, dá voltas e mais voltas e acaba no mesmo lugar.
Eclesiastes (1:4-6)
O Livro de Eclesiastes centraliza uma concepção de sabedoria no Antigo Testamento cujo autor (ou editor) supostamente chamado Kohelet transforma o conservadorismo da sabedoria popular num programa de energia mental contínua. Antes de mais nada, o comentário que segue não é de Teologia ou de Análise Bíblica, não tenho competência para isso. É apenas, e tão somente, uma problematização literária de texto também literário, de altíssimo nível e qualidade, e por isso objeto de muito interesse. Não se duvida da qualidade moral e literária do Livro de Eclesiastes.
Seu autor percebeu melancolicamente que a maldade viceja no mundo, ocupando o lugar da justiça e do Direito (3:16). A suspeita de uma aguda malignidade humana faz-nos sempre sujeitos ao julgamento divino, ainda que entre nós também existem pessoas lhanas e boas (3:17). Nem tudo estaria perdido. E para que saibamos que não somos necessariamente melhores do que os animais é que estamos perenemente sujeitos a provar e a demonstrar nossas eventuais qualidades e bondades (3:18) porque delas também muito temos.
E também porque tudo é ilusão (mote do texto) terminamos a vida exatamente como terminam os animais; afinal, tanto as pessoas como os animais morrem (...) o ser humano não leva nenhuma vantagem sobre os animais, pois os dois têm de respirar para viver (3:19); não nos iludamos, viemos do pó, para onde voltaremos (3:21). Mais dia, menos dia, eu acrescento. Esperemos.
Tudo tem seu tempo, cada coisa tem a sua ocasião (3:1). É que a tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de colher (...) tempo de ficar triste e tempo de se alegrar, tempo de chorar e tempo de dançar (...) tempo de economizar e tempo de desperdiçar (...) tempo de ficar calado e tempo de falar, tempo de amar e tempo de odiar, tempo de guerra e tempo de paz (3:2-8). O cético autor do Eclesiastes viu muitos sendo explorados e maltratados (...) eles clamavam e ninguém os ajudava (...) ninguém os ajudava porque os seus perseguidores tinham o poder a seu lado (4:1). O autor realista do Eclesiastes temperava esse luto existencial com uma ética perturbadora que revelava uma tábua de valores muito relativa: Descobri que na vida existe mais uma coisa que não vale a pena: é o homem viver sozinho, sem amigos, sem filhos, sem irmãos, sempre trabalhando e nunca satisfeito com a riqueza que tem. Para que é que ele trabalha tanto deixando de aproveitar as coisas boas da vida? Isso também é ilusão, é uma triste maneira de viver (4:7-8).
O nosso desiludido sábio alertava para que não nos admiremos quando notarmos em algum lugar as injustiças dos poderosos, a perseguição dos pobres e a negação dos direitos dos mais carentes (5:8). Porém, aconselhava a obediência às ordens do rei (8:2), que pode fazer o que quer (8:3), que age com autoridade, e de quem não se pode reclamar (8:4). Ao obediente às ordens do rei nenhum mal acometerá (8:5).
Na política, o Eclesiastes nos faz prisioneiros do destino, questiona a sociedade como um artefato, a vida normativa como um construído e de algum modo nos captura no contexto de uma ditadura da falta de alternativas. Tem-se uma antropologia política de acomodação, dependendo de como se intérprete esse arcano texto.
A criminologia do Eclesiastes questiona por que as pessoas cometem crimes com tanta facilidade. É que, segundo o autor deste texto tão emblemático, os criminosos não são logo castigados pelos crimes que cometeram (8:12). Afasta-se a etiologia, o conjunto de causas, os motivos determinantes do agir. Centra-se na repressão que, como todos sabemos, tem etiquetados os seus destinatários, especialmente em tempos de criminologia absolutamente midiática. O autor do Eclesiastes intuía essa dimensão de exclusão, na medida em que afirmava que muitas vezes os bons são castigados, e não os maus; e os maus são premiados, e não os bons (8:14).
Há uma álea em tudo que nos cerca. E tudo escapa de nossas previsões, tudo depende da sorte e da ocasião (9:11); porque nem sempre são os corredores mais velozes que ganham as corridas; nem sempre são os soldados mais valentes que ganham as batalhas (9:11). Aos jovens, o autor do Eclesiastes aconselhou que se aproveite a mocidade e que se tente ser feliz; que façamos o que queremos, e que sigamos os desejos de nossos corações (11:9); lembremo-nos, no entanto, que colhemos na velhice exatamente o que semeamos na juventude.
O autor do Eclesiastes moteja de seus leitores, reais ou putativos, estes últimos mais reais que aqueles, sempre, lembrando-nos que ainda que vivamos muitos anos, ficaremos mortos por muito mais tempo (11:7). Aproveitemos. A vida é curta, por mais longa que seja. E não pode ser eterna. Ainda bem. E a morte é eterna. Por mais indiferente que seja. Que pena. Há injustiças em todos os lugares. Afinal, colhe-se do Eclesiastes também, “Eu tenho visto neste mundo uma injustiça que é cometida pelos que governam: eles colocam pessoas tolas em altos cargos e deixam de lado pessoas de valor. Tenho visto escravos andando a cavalo e príncipes andando a pé como se fossem escravos. (10:5-7)”. Mas ainda que até o trabalho seja uma ilusão, se por preguiça você deixar de consertar o telhado de sua casa, ele acabará ficando cheio de goteiras, e a casa cairá (10:18).
Trabalhemos. A vida é confronto e enfrentamento permanente. O risco que se esgota a toda hora. O problema (ou a solução) é que não sabemos o que vai acontecer amanhã e, pior (ou melhor) é que não há ninguém que nos possa contar o que acontecerá (8: 6-8). Para o autor do Eclesiastes não temos outra opção: nós temos de enfrentar essa batalha, e não há jeito de escapar (8:8).
O autor do Eclesiastes é absolutamente cético para com a justiça. É tremendamente realista para com a política. E é exatamente duro para com a vida. E é por isso, pelo enfrentamento que nos propõe, e pela revelação da condição humana que nos propõe, que em nós provoca o desejo de justiça, o gosto pela política e o amor pela vida. Paro por aqui, os livros sempre continuarão a ser escritos e estudar muito cansa a mente (12:12).