A Carta de Caminha, certidão de nascimento do Brasil
A Carta de Caminha, certidão de nascimento do Brasil
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Na formação do cânone literário nacional há dúvidas se a Carta de Pero de Vaz de Caminha seria, de fato, uma obra de literatura ou, como pode-se sugerir, um mero registro burocrático e notarial. E é também do ponto de vista cartorial que a Carta pode ser tida como nossa certidão de nascimento. Nessa inusitada Carta justifica-se a posse portuguesa em terras do Novo Mundo. Atesta-se o pioneirismo lusitano (que já se fazia envolvente desde Os Lusíadas).
Deu-se início ao regime de propriedade, centrada no Estado, modelo que mais tarde se cristalizou definitivamente na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva de propriedade, ao longo do Segundo Reinado. É a base do modelo brasileiro de titularidade da propriedade territorial, rural ou urbana. Isto é, tem-se em torno (e a partir) da Carta de Caminha a justificativa histórica para todo o sistema cartorial brasileiro. Tem-se também documento que nos vincula culturalmente a Portugal.
Documento burocrático ou narrativa de viagem? Gênero que supostamente remonta a Heródoto, e que ocorre deslumbrantemente em Marco Pólo, a narrativa de viagem é substrato nada ingênuo, que se presta a propósitos muito bem definidos. A Carta de Caminha não foge à regra, se a tomamos como uma narrativa de viagem. No entanto, a Carta exerce várias funções. Segundo um provocativo estudo de Flávio Kothe, Caminha registrou a filiação do Brasil à formação portuguesa, manteve a hegemonia da oligarquia lusa sobre minorias étnicas aqui encontradas e impôs uma visão do Brasil como uma utopia.
A Carta de Pero Vaz de Caminha é tratada nos manuais de história e de literatura como documento que atesta a presença da esquadra de Pedro Álvares Cabral no Brasil, legitimando-se a posse da terra, bem como vínculo cultural que nos faria herdeiros diretos da tradição lusitana. Seus traços heroicos marcam posse fictícia, que no plano fático fez-se pela força das armas; justifica-se o genocídio, sem que se fale da carnificina que seria feita. O documento ganha sentido ainda mais surpreendente quando se lembra que a carta ficou esquecida, perdida na Torre do Tombo em Portugal, ao lado de tantos outros documentos, a espera de uso. Trata-se originariamente de epístola, escrita por burocrata, e dirigida ao Rei de Portugal. Não é texto ficcional. Nesse sentido, estrito, não é literatura.
Já se opinou que a carta seria no plano real o que os Lusíadas foram no plano ideal. Era a constatação de que o mito do Eldorado poderia ser um fato real. Mas não se trata de um documento pensado efetivamente para ser publicado. A questão não era, necessariamente, de registrar a impressão que o descobrimento causava na frota. É um documento jurídico, com propósitos jurídicos. A carta foi aproveitada pela tradição que nos vincula a Portugal, em todos os sentidos.
Na Carta, Caminha principia com explicação dos porquês da redação do documento. Lembra que ainda que Cabral e demais capitães da frota tivessem redigido relatos sobre o achamento da terra nova, insistia que daria testemunho próprio. Caminha pede que o Rei tome por boa vontade a ignorância do autor da carta. Dizendo-se neutro, afirmava categoricamente que não aformosearia nem afearia o relato. Na introdução, insiste em proposições como achamento e terra nova, o que provavelmente nos remete a categorias romanísticas clássicas de res nullius. Era uma terra de ninguém, que agora tinha dono.
Caminha insistia que não falaria do caminho que traçaram (marinhagem e singraduras do caminho). O assunto seria mais de técnica náutica, e o burocrata não detinha conhecimento para tanto. Lembra que a esquadra partiu de Belém, numa segunda-feira, 9 de março. Alcançaram as Ilhas Canárias no dia 14 do mesmo mês. No dia 22 de março chegaram às Ilhas de Cabo Verde.
Narrou que a nau de Vasco de Ataíde se perdeu. Seguiram caminho, depois de infrutíferas buscas pela nave perdida. No dia 21 de abril a esquadra deu conta de sinais de terra. No dia seguinte, 22 de abril, verificaram aves, às quais chamaram de fura-buxos. Terra à vista; ao que consta um monte, ao qual chamaram de Monte Pascoal. E a terra nominaram de Terra de Vera Cruz. Ancoraram. Avançaram por terra firme no dia seguinte, e então avistaram homens que andavam pela praia. O capitão Nicolau Coelho avançou pelo rio que então teriam encontrado. Por aqui não havia cartórios e nem tabeliães, mas o registro ficou. É a indiscutível primazia da fonte escrita.
Caminha registrava que não sabiam se havia ouro, prata ou coisa alguma de metal ou ferro. A terra era de muito bons ares, frios e temperados. As águas eram muitas, e infindas. Nessa terra tudo em que tudo se plantava, tudo se dava. Porém, o melhor fruto, lembrava Caminha, era a salvação daquela gente. A fé, na ótica de Caminha, era o que de melhor Portugal poderia trazer para os nativos. Para uns, inegável genocídio cultural. Para outros, forma de propagação da fé no ambiente da contrarreforma.
Em tempo, o autor da Carta pediu que o Rei mandasse vir de São Tomé a um primo, Jorge de Osório, que supostamente cumpria pena de degredo. Muitos veem no pedido um indício de nepotismo ou de corrupção endêmica. Outros veem um pedido de justiça, e nada mais.
Ainda que um texto não necessariamente literário, a Carta de Caminha, como tudo que escrevemos, presta-se a todas as leituras e interpretações. Os textos pertencem aos seus destinatários, e não a seus autores, por mais sublimes ou arcanos que sejam.