O Alienista, de Machado de Assis
O Alienista, de Machado de Assis
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O Alienista é um conto de Machado de Assis que foi publicado em Papéis Avulsos, em 1882. Um pouco extenso para conto, algo curto para novela, O Alienista foge de padrões mais comuns. A estrutura narrativa se desdobra em circunstâncias inesperadas, cativando o leitor, que é guiado para um mundo imaginário, surpreendentemente plausível, real; no entanto, absurdamente quimérico, fantasioso, inexistente. Trata-se da estória do Dr. Simão Bacamarte e do estudo da loucura que ele empreendeu em algum lugar fictício e bem machadiano: Itaguaí.
O Dr. Simão Bacamarte é o personagem principal dessa sátira. Cientista aclamado em Portugal, aplaudido nas maiores universidades do século XVIII, correspondente dos grandes sábios, protegido do rei e de toda a Corte portuguesa, Bacamarte simboliza o sábio que só presta contas para a ciência, da qual se diz devoto e fiel seguidor. Era na verdade um tirano. Dona Evarista de Moraes era sua esposa; viúva, teve um primeiro casamento, orçava 25 anos, não era bonita nem simpática. Bacamarte apostou nas qualidades fisiológicas e anatômicas da esposa, que, no entanto, não lhe deu a descendência que esperava. Na sátira há também um certo Porfírio, apelidado de Canjica, o barbeiro, que liderou uma rebelião contra o alienista. Crispim é o boticário, o farmacêutico que manipulava receitas, prescrevia unguentos, vendia remédios e prestava assistência médica em emergências.
Os recursos que seriam destinados ao sanatório exigiram muita imaginação para obtenção. Em Itaguaí tudo já era tributado. Criaram um novo tributo. Os cavalos destinados a levar as carruagens com os mortos nos enterros seriam enfeitados com dois penachos. Justificava-se que dois tostões seriam devidos à prefeitura, pelos penachos, repetindo-se tantas vezes essa quantia quantas fossem as horas decorridas entre a da morte e a da última bênção na sepultura. Não é preciso muita imaginação para intuirmos que os enterros passaram a ser rapidíssimos. Hoje chamaríamos de planejamento tributário ou de elisão fiscal...
O Dr. Simão Bacamarte deu início à obra e no frontispício da Casa de Saúde fez gravar frase atribuída ao Profeta Maomé, que teria respeitado os loucos, dado que deles, por poder divino, fora retirado o juízo, exatamente para que não pecassem. Porém, Bacamarte atribuiu a citação do profeta ao Papa Benedito VIII, na expectativa de não desagradar às autoridades da Igreja Católica. Ganhou apoio incondicional dos clérigos. Chamou-se o sanatório de Casa Verde em virtude das cores das janelas.
O Dr. Simão Bacamarte lotou o hospital, a loucura era generalizada, estava em todos os lugares. Alguns inicialmente duvidaram da própria sanidade do médico e houve quem sugerisse que Dona Evarista recomendasse que Bacamarte fizesse um passeio ao Rio de Janeiro, para tomar novos ares. Bacamarte sustentou a necessidade da construção do prédio e o fez com tal veemência que a Câmara de pronto deferiu-lhe o pedido. Bacamarte ampliou o território da loucura e continuou prendendo todas as pessoas de cuja sanidade duvidasse.
Segundo o Dr. Simão Bacamarte, havia também loucos por amor, três ou quatro. Havia escrivão que se dizia mordomo do rei; outro se fazia de boiadeiro de Minas Gerais, e que passava o tempo distribuindo boiadas imaginárias. Entre os maníacos teológicos, havia um tal de João de Deus, que o narrador nos fala que se fazia passar por Deus João... Bacamarte conviveu também com sintomas de melancolia da própria esposa, que, embora não se queixasse, mostrava-se cada dia mais triste, pouco comendo, emagrecendo com rapidez.
A cidade deu os primeiros sinais de insatisfação. Instalou-se um regime de terror. Multiplicaram-se as internações. Recolheu-se à Casa Verde um dos cidadãos mais queridos de Itaguaí, Costa. A patologia: distribuía e emprestava sem cobrar juros toda uma herança que recebera. Ficou pobre, e ainda assim não ralhava com seus devedores. Recolheu-se logo mais o Matias, que pela manhã tinha o costume de admirar, do jardim, uma casa maravilhosa que construíra na cidade. Os que não estavam no hospício começaram a inventar uma série de teorias para justificar a sanha de Bacamarte. Um médico sem clínica afirmara que a Casa Verde era um cárcere privado. Outros achavam que o alienista era vingativo e que só pensava em dinheiro. Houve quem acreditasse que era um castigo de Deus.
Dona Evarista, elevada à condição de musa da ciência, passou a ser a esperança da cidade. Reconduziria o marido ao bom juízo. Em um banquete em sua homenagem, um moço improvisou um discurso oco, elogiando a esposa do doutor. Bacamarte suspeitou que o orador inflamado sofria de um caso de lesão cerebral, que se propunha a estudar. O rapaz foi recolhido na Casa Verde. Alguns acharam que o ciúme motivara o alienista. Pensou-se em se requerer a captura e deportação do próprio Bacamarte.
Estourou uma rebelião, a Revolta dos Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio. Cerca de 30 pessoas representaram à Câmara em desfavor do alienista. O legislativo recusou processar o pedido, invocando que não se poderia menosprezar a ciência por interferência administrativa e muito menos por movimentos de rua. Bacamarte não se intimidou. Recebeu Porfírio. Para assombro do alienista, ensaiou-se aproximação, insinuou-se acordo. E Bacamarte desconfiou que o Canjica precisaria ser estudado. A Força Pública acabou com os motins de rua. Destituiu-se o Canjica. Bacamarte recebeu mais apoio. Libertou todos os que até então estavam enclausurados. Para surpresa geral, Bacamarte reviu suas teses. O alienista fechou-se na Casa Verde. Passou a estudar a si mesmo. Lá teria morrido 17 meses depois.
O Alienista alcança temas de psicopatologia forense (dado que a loucura é o eixo da narrativa), de tributação (a criação do asilo de loucos exigiria recursos), da relação entre política e Direito (a casa dos alienados decorria da autoridade e do prestígio de seu diretor, o Dr. Simão Bacamarte).
É um conto que duvida da ciência, do positivismo, das verdades epistemológicas, dos paradigmas canonizados. É uma crítica atemporal contra todos os saberes dominantes, que se deslocam no tempo e no espaço. É uma crítica à fragilidade das instâncias da vida, da fragilidade dos próprios direitos e mesmo da nossa insignificância, quando submetidos a um poder incontrolável. Trata da própria condição humana: todos são loucos, menos nós mesmos, o que não deixa de ser uma forma de loucura.