O Conto da Aia e a distopia teológica e ambiental
O Conto da Aia e a distopia teológica e ambiental
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O Conto da Aia, da canadense Margaret Atwwod, é impressionante romance que descreve uma distopia teológica e ambiental. Um futuro assombrador, no qual as pessoas são dominadas por padrões religiosos, tal como fixados, especialmente, no Antigo Testamento. Publicado em 1985, O Conto da Aia leva ao limite a premonição da ameaça do horror de um estado totalitário religioso. Mais. É também uma ficção de inigualável força feminista, que denuncia - - em um tempo futuro - - uma situação que é presente e de todo modo permanente. É preocupante.
O livro contém duas partes distintas. Primeiramente, tem-se o relato propriamente dito, redigido em primeira pessoa, na qual a narradora conta-nos as situações pelas quais passou, descrevendo a sociedade, rituais, hierarquias, sistema jurídico e o atribulado ambiente no qual vivera. Na segunda parte, em tempo muito posterior, tem-se uma reunião de estudiosos, que discutem o texto, problematizando sua veracidade. A realidade narrada na primeira parte é tomada como um fato histórico. Na segundo parte tenta-se descrever o regime e o pano de fundo dos supostos relatos.
Sabe-se, na leitura da segunda parte, que os fatos teriam ocorrido (se verdadeiros) em um local que se conhecia como Gilead. Reminiscências foram encontradas em um sítio arqueológico no local onde um dia fora a cidade de Bangor, que em tempos ainda mais pretéritos teria sido o estado do Maine, nos Estados Unidos. Os relatos estavam dispostos em forma de fitas, que foram transcritas. Utopias, distopias e textos de ficção científica carregam o peso de descrição de um futuro cuja tecnologia não se conhece.
Não se conseguia identificar exatamente quem fora a narradora, isto é, se existira ou não. Os historiadores reconheciam que não havia esperança de rastreá-la. Supunham que o local fora atingido por catástrofes ambientais que resultaram na impossibilidade de as mulheres engravidarem. Por isso, as poucas que ainda podiam gerar bebês eram conduzidas para as casas dos líderes políticos e burocráticos (os comandantes) de quem se tornavam servas. Também obedeceriam às temíveis esposas desses comandantes. Perdiam os nomes originários e eram a partir de então conhecidas com um nome que refletia a relação de propriedade que os comandantes exerciam sobre elas. A narradora era uma dessas servas. O regime teria criado uma reserva de mulheres reprodutoras, declarando adúlteros todos os segundos casamentos e ligações extraconjugais. Parceiras de sexo feminino eram presas. Fundamentava-se que essas mulheres eram moralmente inaptas. Seus filhos seriam confiscados.
Acrescenta-se também que uma cepa incontrolável de sífilis, além da Aids, também tivesse contribuído para a brutal queda de natalidade. Havia notícias de bebês natimortos e de deformidades genéticas que neutralizavam qualquer crescimento populacional. Também contribuíram para essa catástrofe acidentes com usinas nucleares, armas químicas e biológicas, além do descontrole de lixos tóxicos. Acredita-se que houve uma época na qual o ar em Gilead ficou carregado de substâncias químicas, raios, radiação. A água ficara poluída com moléculas tóxicas.
O insumo ideológico bíblico era predominante. A fórmula de procriação era alusão à passagem veterotestamentária de Raquel, que não conseguia conceber e propôs ao esposo, Jacó, que dormisse com sua escrava Bila. Segundo a narradora, a Bíblia era mantida trancada; era um texto incendiário. Os refratários ao regime eram sumariamente executados, em cerimônias denominadas de salvamento. Inimigos do regime eram acusados de estupradores e, por esse motivo, eram sumariamente executados. Invocava-se o Antigo Testamento, Deuteronômio 22:23-29, que dispõe sobre a pena aplicada a estupradores.
Gilead viveu sobre um sistema totalitarista com fundamentação teológica. Havia uma agência de controle das mulheres, formadas por mulheres mais velhas, chamadas de Tias, às quais a narradora recorrentemente se refere. O relato propriamente dito é assustador. As Tias patrulhavam as aias, que controlavam com aguilhões elétricos de tocar gado que eram suspensos por tiras de seus cintos de couro. Segunda a narradora, as Tias não usavam armas de fogo. Essas eram para os Guardiães, como se chamavam os que mantinham a ordem. Eram muito violentos. As Aias não podiam sair das casas dos comandantes, exceto para fazer compras para as patroas.
O tempo era medido por sinos enervantes. Não havia espelhos, como nos conventos. Nas casas havia também servas que cuidavam das tarefas diárias, as Martas. Maridos eram poderosos e podiam bater nas Aias; argumentava-se que havia precedente bíblico. As donas de casa não admitiam que as Aias se relacionassem com seus maridos no que transcendesse aos fins de procriação. No caso da narradora, reconheceu sua patroa. Fora uma famosa figura da televisão: seu nome era Serena Joy, que conduzira um programa religioso de fortíssimo fundo moral.
A escrita deixou de ser utilizada. Os lugares eram reconhecidos por grandes insígnias. Símbolos substituíram os caracteres do alfabeto. Um açougue era representado por uma grande costeleta de porco, feita de madeira, e pendurada em duas correntes. Em Gilead não havia muitas coisas feitas de plástico. A narradora observava que se lembrava de infindáveis sacolas plásticas de compras de supermercado. Conta que detestava o desperdício de jogá-las no lixo. Por isso, as juntava e, quando muitas sacolas, jorrando do armário, então ela se desfazia de tudo aquilo.
Escrito em meados da década de 1980, o livro é tão atual, inclusive quanto as referências de ficção científica. O leitor, acreditando no relato da narradora, atemoriza-se com um futuro distópico no qual a violência e a religião se aliaram fixando um regime de opressão raramente descrito, inclusive na literatura de ficção. É um livro assustador.