A paixão como eterno crime culposo
Poucos livros conseguiram abordar as relações conflituosas no casamento como A Guerra Conjugal, do escritor curitibano Dalton Trevisan. Os contos reproduzem os papéis e o psicológico de muitos casais. Com objetividade, humor negro e uso de metáforas, seus textos transmitem uma valoração naturalista da união entre homem e mulher.
Em todos os contos, dois personagens se fazem presentes, João e Maria, por si só uma ironia do autor, pois nos remetem a famosa história dos Irmãos Grimms. Lembrando o Star System usado em obras de mangá, como as de Osamu Tezuka. Assim a visão do leitor se volta para as ações dos personagens e a influência do meio em que vivem. Isso foi essencial para que sua narração direta não ficasse vaga durante a leitura.
Sua narrativa sintética não impediu a construção de personagens redondos, algo bastante difícil numa narrativa tão árida. O casal onipresente, ao longo dos diversos contos apresenta inúmeras facetas. Em algumas histórias João é um homem passivo com os atos de Maria, seja na infidelidade ou sendo violentado pela mesma. Em outras ele é o carrasco, trata Maria com indiferença, torturando-a ou a trai com um amante.
Maria por sua vez, vai de uma dominadora até uma escrava sexual. Muitas vezes a esposa usa dos seus dotes físicos para obter do marido ganhos materiais, ou exceder na lascívia e ser perdoada. Em alguns contos, no entanto, Maria sofre horrores ao se casar com João. Os fetiches do cônjuge ferem não apenas o corpo de Maria, mas também o seu orgulho, ao ponto de em uma das histórias, João colocar o amante para viver sobre o mesmo teto.
Outros personagens constantes em todo o livro são os filhos. Apresentam-se sempre como vítimas do malfadado casamento entre João e Maria. As famílias crescem desestruturadas. Se o casal ganha em algum aspecto, os filhos saem perdendo, tanto na saúde, paz, lazer etc.
João e Maria constituem o arquétipo de casamento feliz que inexiste por vários motivos apresentados no livro: As paixões e o instinto sempre acabam interferindo na união conjugal, o casamento formado por interesses materiais impedem qualquer desenvolvimento sentimental, a idealização do casamento encobre as motivações dos conjugues, o casamento também é feito de conflitos. Muitos outros motivos são apresentados no decorrer do livro, o que acaba tornando as situações absurdas, porém reais.
Sua experiência como advogado deve ter ajudado a formar os cenários dos contos, muitos deles lembram o gênero policial, os finais sempre imprevisíveis e abruptos deixam o leitor desconcertado. A escrita rica de Dalton Trevisan impressiona pelos artifícios que usa nos seus textos, por exemplo, o gore em alguns contos deixam as suas histórias bastante sombrias. A dependência física de alguns personagens sejam eles João ou Maria, dá o parecer de que a paixão é uma droga, e o casamento um ritual para o seu uso.
Com a falta de descrição dos personagens, pois são tão comuns que mesmo o leitor (a) poderia ser um deles (as), o que nos resta é nos atentar ao cenário. Por vezes a imundície dos antros, e mesmo nos personagens, é o que mais impressiona. Ficamos sem entender porque homens tão asquerosos acabam seduzindo as belas Marias? E horrorosas mulheres os valorosos João? Talvez a resposta esteja na imposição do casamento pela moral vigente.
Algo notável nos escritos de A Guerra Conjugal é o uso de metáforas seja para encobrir ou codificar conteúdo erótico, tornando as passagens por vezes fantasiosas e em outras até poéticas. Vide o seguinte trecho do conto Quarto de Horrores: “Em pé na cama, inteiramente despido, João soprava a flautinha de bamba... Olhos vidrados, descobertas as vergonhas, girava à sua roda, ora aos pulos, ora de cócoras...”; outro conto com uma bela metáfora é A Normalista: “Sobre a cabeceira a imagem da santa e ali na cômoda a manada de elefantes vermelhos do bem grande ao menor, sempre de trombas para a parede...”. O foco da narrativa é o psicológico dos personagens que são transmitidos através das suas ações nem sempre louváveis. A um clima de demência nas relações “afetuosas” dos personagens que lembram o filme Psicose.
Outra consideração a sua precisa narrativa é o uso de elementos sensoriais. Chegam a se tornar sensitiva as coisas simples do dia a dia como o amargo do café, o frio do sereno, o penacho de um cardeal ganha não apenas forma, mas total sensibilidade através das palavras de Dalton. Para histórias tão conflituosas, esse uso de elementos sensoriais acaba por diminuir o clima pesado da narrativa.
A Guerra Conjugal mostrou que o casamento não passa de uma idealização extravagante de uma moral piegas. Nos contos do livro ninguém consegue se realizar na instituição falida que se tornou o casamento, seja ele civil, no religioso ou as uniões estáveis. Muito disso devido à interferência de outrem, e do que cada João e Maria espera receber, e não doar em prol do outro.