"Histórias do Acontecerá": ficção científica brasileira

HISTÓRIAS DO ACONTECERÁ: FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA
Miguel Carqueija

Gumercindo Rocha Dórea é um nome lendário na FCB, o editor que, apaixonado pela ficção científica, incentivou vários autores nacionais a escreverem neste gênero. Assim ele concebeu a sua “Ficção Científica GRD”, coleção iniciada no final da década de 1950 e que revezava autores nacionais e estrangeiros.
Resenha da antologia “Histórias do acontecerá — 1”. Ficção Científica GRD volume 12, dezembro de 1961. Edições GRD, Rio de Janeiro-RJ. Capa: Adir Botelho.
NATAL G-3-327, por Álvaro Malheiros.
O autor, provavelmente católico, imagina o Cristo encarnando num outro planeta, num distante futuro onde a humanidade terrestre se espalhou por outros sistemas, dominou outras civilizações e formou uma espécie de Império Romano Galático. O Coronel Spark, representante de um sistema materialista, não pode aceitar que um Messias nasça numa colônia, ao tempo de um recenseamento (sic). Mas existem falhas técnicas na história. Por exemplo, Spark e o Tenente Olav são os únicos terrestres que aparecem. Cadê os outros, da administração da colônia? Álvaro fez tudo pelo facilitário, daí o entrecho exibir uma simplificação excessiva.
A ORGANIZAÇÃO DO DR. LABUZZE, por André Carneiro.
Conto um tanto longo e na primeira pessoa. Um sujeito, especialista em água pesada, atendendo à dica de um tio (não aparecem outros parentes) dirige-se a um lugar misterioso e cercado, sendo contratado por certo Dr. Labuzze. Entretanto lá não tem o que fazer, por falta de material, passam-se semanas, meses, nada acontece, ninguém esclarece coisa nenhuma e certa noite o protagonista sem nome julga avistar um UFO.
André carneiro é tido até como o nosso maior escritor de ficção científica mas, apesar do seu domínio da escrita, este conto raia pelo inverossímil, a começar pelo caráter indeciso do personagem e a total incongruência de tudo o que acontece. O final em aberto não convence e a figura do Dr. Labuzze é anódina, sem força alguma como personagem. Seu nome será inspirado no Dr. Mabuse de Fritz Lang?
O DESAFIO, por Antônio Olinto.
Grande crítico literário — sua coluna era uma das melhores na imprensa brasileira — Antônio Olinto parece-me fraco como contista, pelo pouco que pude ler. Na ficção científica é bissexto. Esse conto aborda o velho tema da possível humanização das máquinas ou seres artificiais. No caso trata-se de um robô, o T-55, que aprende o Latim que estaria em grande voga no século 25) a ponto de participar de um improviso com um rapaz humano. Além disso apaixona-se por uma garota humana. O conto tem uma certa beleza poética.
O PARAÍSO PERDIDO, por Clóvis Garcia.
Outro clichê da FC é a inabitabilidade da Terra após alguma guerra ou outra catástrofe. Nesta vinheta a humanidade refugiou-se em Marte após a guerra atômica. Entretanto só os vales profundos são habitáveis por conta de atmosfera mais densa. Na época em que o conto foi escrito ainda se brincava com tais hipóteses, mas desde os anos 60 as sondas mostraram que Marte é bem menos habitável para nós, do que se pensava.
É aquele tipo de conto em que os personagens nem nome têm, e noto também que o autor só consegue imaginar homens — o avô, o pai e os netos — com exceção da mãe. O avô lamenta o “paraíso perdido” — a Terra — mas ninguém mais liga tanto como ele. Apenas isso. Os autores brasileiros daquele tempo costumavam ser desajeitados em suas raras incursões nos domínios da ficção científica.
O CÉU ANTERIOR, Por Dinah Silveira de Queiroz.
Uma típica história de “ficção científica católica” e provavelmente o melhor conto do volume. Num distante futuro astrônomos diversos sofrem uma estranha neurose por observarem no “Céu Anterior” — espécie de planetário que mostra a passada configuração do céu astronômico — a presença de uma estrela que não deveria estar ali. Trata-se da Estrela de Belém, comunicando-se com um futuro de materialismo...
A história é basicamente uma mensagem da fé da autora, sabidamente católica. E tem charme.
A EXPERIÊNCIA, por Leon Eliachar.
O conto em questão, mais tarde publicado em “O homem ao cubo” (livro humorístico do autor) na verdade é mais uma sátira às histórias de ficção científica, com o personagem-narrador sendo aos poucos reduzido a “nada” para, sem peso, ser lançado ao espaço dispensando astronave. A narração prima pelo absurdo e é somente divertida.
Leon Eliachar foi em sua época um humorista muito famoso e veio a morrer de maneira trágica.
MA-HORE, por Rachel de Queiroz.
Este conto intitulava-se originalmente “História do Acontecerá”, título que a autora cedeu à GRD para a antologia, conforme explica nota editorial. O título foi então pluralizado e numerado, pois na verdader consta na capa: “Histórias do Acontecerá – 1”. Mas as antologias seguintes não vieram, e quando vieram na década de 90 (!) não vieram com esse título.
Então o conto ficou tendo como título o nome do personagem principal, um pequeno habitante anfíbio e racional de algum distante planeta, raptado por astronautas terrestres, dispostos a levá-lo à Terra como uma curiosidade científica.
Ma-Hore é um selvagem que vive em contato com a natureza e é naturalmente inocente e ingênuo — apesar de que, o decorrer da história mostra que ele não o é tanto.
É pena que Rachel de Queiroz, que aqui se saiu bem, não tenha perseverado na FC — apesar de que, parece-me que ela publicou outro texto do gênero na velha revista “O Cruzeiro”.
A IDADE DA RAZÃO, por Ruy Jungmann.
Num futuro de vários séculos a guerra se resolve por meios virtuais. Não numa internet — o texto não chega a antecipá-la — mas num jogo entre as partes organizado pelo “Grande Computador”. Os países e seus patrimônios vão sendo destruídos em teoria, até o computador sabe-tudo declarar quem é a parte vencedora.
A história é meio risível além de muito vaga, mas parece que o autor quer fazer uma crítica ao domínio da máquina e também á insegurança global trazida pelas armas modernas.
MATERNIDADE, por Zora Seljan.
Esposa de Antônio Olinto, Zora também fez algumas incursões nos domínios da ficção científica. Este pequeno conto, onde uma criança é gerada através da música, é uma espécie de poesia em prosa, praticamente um surrealismo escrito com muita sensibilidade, mas provavelmente de difícil assimilação para a maior parte dos leitores de FC.

Rio de Janeiro, 7 de junho a 1º de julho de 2019.