Diário das minhas leituras/41

12/09/2019 – CONTOS IRLANDESES DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Luci Collin faz um trabalho admirável de resgate da literatura irlandesa, ainda pouco conhecida por aqui. O próprio James Joyce é frequentemente chamado de “inglês”, e creio que a maioria das pessoas sequer sabe que também há um idioma próprio no país, o gaélico. O trabalho feito por Luci permite diminuir a distância que temos em relação à cultura irlandesa, mesmo que pegando um período bem específico de sua produção literária, ou seja, de 1902 a 1923. Isso porque boa parte desses contos “modernos” estão amplamente impregnados de antigas tradições e mitologias locais. De fato, chega até a espantar como as lendas e histórias muito, muito antigas mesmo continuavam a se fazer presentes na literatura irlandesa do início do século 20. Alguns dos escritores recriam esse folclore nacional, passando-o da oralidade à escrita, e outros simplesmente o misturam à vida moderna, mas, seja como for, ele é manifestado ao longo da maior parte da produção desse livro – que é curtinho, 10 contos, menos de 150 páginas. O livro também permite visualizar a questão divisão religiosa no país, que é, ainda hoje, um dos aspectos pelos quais a Irlanda mais nos chama a atenção. Isso é visível no conto “Uma carta para Roma”, que foi aquele de que mais gostei no livro, feito por Georg Moore, com influência russa, notadamente Turgueniev. Nele, em meio a um país miserável que já perdia população para a América, um padre escreve uma carta ao Papa pedindo que conceda aos sacerdotes irlandeses a possibilidade de se casar, o que faria com que as pessoas permanecessem na terra e, ao mesmo tempo, conteria o avanço protestante. Questões da língua irlandesa são uma das características que podem ser observadas em “Um problema irlandês”, de Somerville & Ross, conto a respeito de um curioso julgamento que também fornece uma imagem interessante da vida dos camponeses irlandeses. Liam O’Flaherty, em “O atirador”, oferece ainda uma realista história que se passa nas primeiras semanas da guerra civil irlandesa. O conto de Joyce no livro é “A pensão”. Entre os contos que estão mais voltados às tradições e mitologias locais, estão os de Lady Gregory, W. B. Yeats (esse é Nobel de Literatura), Lord Dunsany e James Stephens. Seumas O’Kelly parece juntar o tradicional e o moderno e há ainda Bram Stoker, o autor de “Drácula”, com um conto que também é marcado pela atmosfera de suspense.

14/09/2019 – NELSON RODRIGUES

“O óbvio ululante” começa com cinco crônicas girando em torno da morte de Guimarães Rosa e se tem a impressão que, se fossem dez, vinte, cinquenta, um livro inteiro, ainda seriam lidas com grande prazer, tal é a capacidade do autor em envolver o leitor com seu estilo ágil e original. Nelson vai circunvagando o tema de uma forma que parece ocasional, mas quando a gente entende onde ele queria chegar com o que estava dizendo é que a gente percebe a construção inteligente que a argumentação estava tecendo. A todo momento ele evoca um episódio da infância com o qual irá comparar o acontecimento presente e a si mesmo, o que sugere que a sua crônica funcionava para ele até como tratamento psicanalítico. Há um humor que não se pode deixar de falar: Nelson era muito, muito engraçado nas suas crônicas, mas é aquele humor de gente mal humorada, de quem faz a piada como quem fala a sério. Uma delícia e tanto.

18/09/2019 – MARK TWAIN

Terminei a leitura de Mark Twain e suas “Alegres histórias” (que é praticamente idêntico ao “Os melhores contos de Mark Twain”). Era realmente um satírico de marca maior, que adorava brincar com as vaidades e a hipocrisia por trás do bom-mocismo com que as pessoas constroem a sociedade. Não poupava, para isso, nem mesmo o George Washington e os mitos a ele associados. Gostava de recriar as histórias bíblicas, o que, no fundo, era também uma negação da seriedade com que tais histórias eram relatadas e tratadas. Apresentava um mundo mais real, aquele em que as pessoas más não recebem um castigo do céu, mas continuam fazendo coisas más livremente, ao contrário do que os livros educativos e religiosos fazem crer. Algumas de suas filosofias podem ser bem observadas em “Minha primeira mentira e de como me safei dela”, que não é exatamente um conto, mas uma exposição de motivos do personagem a sugerir que a “mentira silenciosa” é a tônica não apenas da vida individual, mas, principalmente, a da vida das nações, embora todos manifestem o seu repúdio à “mentira falada”. Mark Twain sabia também prender a atenção maravilhosamente, como no conto “Uma curiosa aventura”, que não é um conto de humor, e pode ser até um conto triste, sobre um jovem suspeito de ser um espião militar, quando apenas usava a imaginação para se entreter. Outro destaque é “O demorado passaporte russo”, que poderia ser chamado até de kafkiano, se Kafka não tivesse vindo depois. “Vivo ou morto?” também é um conto dos mais interessantes, em que se nota também o acento crítico, a partir da história de um grupo de pintores miseráveis que resolve simular a morte de um deles por saber que só então as suas obras poderiam ser valorizadas. Há até um bom drama, “O disco da morte”, mas que tem um desfecho alegre, e uma curiosa novela da Idade Média, mas, no geral, sobressaem-se textos que reforçam absurdos e ironias cotidianas.

20/09/2019 – PHILIP ROTH

“Adeus, Columbus” é o primeiro livro de Roth e é, também, o primeiro que leio dele, começando, assim, a saldar uma das minhas dívidas literárias. A primeira história, que dá nome ao livro, é uma novela, se é que não é um romance, sendo que as demais constituem contos. Gostei muito dessa primeira narrativa. Achei a linguagem ágil, sem se perder em floreios desnecessários, personagens bem delineados e muito verossímeis, além de uma trama que mantém o interesse desperto, ainda que não tenha lá nada de muito filosófico ou existencial, como costuma me agradar. É uma história de amor do início da vida adulta, mas também o de conflito de gerações em meio a famílias judaicas. Se fossem 300 páginas, leria com prazer.

24/09/2019 – PHILIP ROTH

“Adeus, Columbus”, o primeiro livro escrito por Philip Roth, foi, também, o primeiro livro que li dele. Acho que é uma estreia em grande nível. Gostei principalmente da novela que abre o livro, com uma história de amor em meio a conflitos de gerações no meio judaico. Também achei bem instigante o conto que vem na sequência, “A conversão dos judeus”, que me deixou a seguinte reflexão: apenas situações extremas são capazes de demover uma crença religiosa, pois a razão, por si só, não é suficiente. A cena em que o menino está no telhado da igreja “pregando” aos judeus é bastante marcante. Depois vem “O defensor da fé”, que também apreciei, sobre um soldado judeu que procurava certos privilégios ao se dar conta de que o seu sargento também era judeu (nesse, no entanto, o encontro gera grande conflito e angústia). Curiosamente, as histórias desse livro estão dispostas exatamente na minha ordem de preferência, de maneira que eu gostei mais das primeiras e menos das últimas. Mas em todas percebi méritos, sendo que as implicações do judaísmo na vida contemporânea (algo que se pode obsevar também no Isaac Bashevis-Singer, nobel de Literatura) está presente em todas e é um dos seus aspectos mais relevantes.

26/09/2019 – HERMAN MENVILLE

Melville não fez só "Moby Dick" (que eu ainda não li), mas também pérolas como "Bartleby, o escrivão". Sujeito esquisitão é contratado como escrivão, mas se recusa a fazer várias coisas que o chefe lhe pede. Diz apenas "Prefiro não fazer", sem qualquer outra explicação. Vamos conferir esse documento? "Prefiro não fazer". Quer ir até o correio? "Prefiro não ir". E o chefe não consegue arrancar mais nada dele. Ele ao menos fazia muito bem o serviço de copista, até o momento em que também isso ele "prefere não fazer". E quem disse que dá para mandar o cara embora? "Prefiro não ir". O cara é mandado embora, mas não vai. Fica ali no escritório - aliás, ele passou a dormir ali. Não saia, não via ninguém. Mal comia. A coisa chega ao ponto de o chefe mudar o escritório para outro prédio, só para se livrar dele. Não li ainda nenhuma análise sobre a história, mas eu vejo da seguinte maneira. Toda vez que Bartleby diz "prefiro não fazer" é porque algum dia ele JÁ FEZ o que estavam lhe sugerindo e o resultado não foi positivo. De início, ele devia se esforçar para fazer o que lhe pediam, mas, por mais banal que fosse a atividade, isso lhe custava tamanho esforço pessoal que chegou um momento que ele desistiu. Agora ele não faz. Quando decide parar de fazer as cópias, é porque estava prejudicando a sua vista. Depois de um tempo os olhos melhoraram, mas se ele fizesse aquilo de novo a sua vista iria ficar ruim novamente. Então ele "prefere não fazer", porque é o medo que dita o seu comportamento. Não é que ele defenda a sua "individualidade", o seu "direito de não fazer", o que Bartleby defende é a sua própria vida, em toda a sua integridade - por mais absurdo que nos pareça, é um drama dessas proporções que se passa na cabeça de um fóbico quando lhe pedem para fazer uma coisa banal como ir ao correio. Ele não quer dar explicação, não quer falar de si, porque já deve ter feito isso - e não foi nada bom. Bartleby é o paroxismo do fóbico, é o medo levado às últimas consequências. Ele quer ficar no seu cubículo no local de trabalho porque ali tem segurança. Por que sair de lá e ir para um lugar onde será julgado por todos? Bartleby está paralisado e assim ficará, se preciso for, até a morte. Tipos assim existem em nossos dias e em nossa realidade. São consequências do nosso processo de desumanização, da vida burocrática, impessoal e competitiva que nós adotamos. PS: Soube também da visão que vê Bartleby como alegoria da “resistência passiva” (ou pacífica) contra todo tipo de dominação, tema que, aliás, muito me empolga, a partir do que li do Tolstoi, mas não me pareceu que essa metáfora se encaixasse perfeitamente no caso do misterioso Bartleby (apesar de uma referência explícita ao termo “resistência passiva”. É que achei o personagem “perdido” demais para que essa interpretação pudesse ser acolhida. Mas sem dúvida um mérito dos grandes livros é justamente a multiplicidade de sentidos e de interpretações que ele evoca.

27/09/2019 – CONTOS DE HERMAN MELVILLE

Foi meu primeiro contato com o autor. Embora o livro fale em “Contos”, são apenas 4, sendo que dois deles estão mais para novelas, pelo tamanho. O nome mais apropriado talvez devesse ser “Bartleby e outros contos”, porque “Bartleby” é realmente a melhor história do livro – aliás, é mais do que isso, é um dos grandes momentos da literatura mundial. O conto “O homem do para-raios” é bom também, além de curto, mas então vem “O terraço”, texto simbolista e impressionista que apenas a custo de muita leitura dinâmica foi possível concluir. Depois, outro conto enorme, “Benito Cereno”, sobre um motim de negros de um navio negreiro. Embora na introdução tenha sido destacada a opinião de que Melville pretendia, com o conto, incitar à revolta os negros do sul (e esse comentário aparentemente é de um branco), fiquei com uma impressão maior de que, na verdade, é endossado o pensamento racista, pois se evidencia uma crueldade que, na história, parte apenas dos negros revoltosos, como se não houvesse crueldade alguma em se achar detentor e proprietário de outro ser humano. Não estou certo de que o racismo que se observa em alguns comentários seja meramente o da história, e não o do próprio autor. Este também é um conto que tem algumas passagens de leitura lenta, excessivamente descritiva para o meu gosto. Em suma, a boa opinião que posso ter do Melville por esse livro é apenas pelo incrível “Bartleby”.

01/10/2019 – HERTA MÜLLER

Li “Depressões”, livro de contos, o primeiro dessa Nobel, também o meu primeiro contato com ela. São textos escritos em certo tom onírico, pictórico, lírico, que parece agradar a bastante gente, mas devo confessar que para mim foi uma leitura bastante penosa, pois o tempo inteiro eu tinha a sensação de que não estava entendendo absolutamente nada. Não consegui me abstrair de um excessivo racionalismo e fazer dessa leitura uma coisa prazerosa. Depois de um tempo diante dessa dificuldade, eu começo a ficar impaciente e vou atropelando a leitura mesmo. Os dois contos que consegui apreciar são "Crônica da aldeia" (em que se nota inclusive certo humor satírico, em meios às agruras de uma vila suábia) e "A risca do cabelo e o bigode alemão", um drama que me pareceu muito bonito. Da novelona "Depressões" eu apreendi pouco, muito pouco. No posfácio do livro, o Ricardo Lísias chega a comparar o estilo do texto ao do Graciliano, pela economia de elementos, mas acho que nunca tive com o velho Graça uma dificuldade semelhante. Admito que muitas pessoas possam apreciar o estilo da autora nesse livro, mas não é o meu caso, infelizmente.

milkau
Enviado por milkau em 01/10/2019
Reeditado em 11/10/2019
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