"Mateus e Mateusa" de Qorpo Santo: desconhecido do grande público, escritor brasileiro é um dos pioneiros do Teatro do Absurdo
Livro "Mateus e Mateusa", peça em ato único escrita 153 anos atrás pelo gaúcho Qorpo Santo, pseudônimo adotado por José Joaquim de Campos Leão.
Qorpo Santo é considerado um dos pioneiros do que veio a ser chamado de "Teatro do Absurdo". Esse termo foi criado em 1961 pelo crítico húngaro Martin Esslin e tinha como intuito criar uma definição que abrangesse escritores de vários países que tinham uma única coisa em comum: o tratamento inusitado (absurdo) das relações humanas.
Segundo a Wikipedia, o Teatro do Absurdo teve como pioneiros o escritor romeno Eugène Ionesco (1909-1994), o irlandês Samuel Beckett (1906-1989), o russo Arthur Adamov (1908-1970), o inglês Harold Pinter (1930-2008), o espanhol Fernando Arrabal (1932), o francês Jean Genet (1910-1986) e o estadunidense Edward Albee (1928). Seriam ainda precursores deste gênero Alfred Jarry (com a obra "Ubu Rei", de 1896) e Guillaume Apollinaire (com a obra "Les Mamelles de Tirésias", de 1903).
Então, cadê Qorpo Santo? O escritor brasileiro nem sempre é lembrado quando se trata do pioneirismo no Teatro do Absurdo, embora obras como "Mateus e Mateusa", que fariam parte desse gênero, terem sido escritas bem antes do que os autores citados.
Um dos motivos (senão o principal) é o fato de Qorpo Santo ser bem desconhecido, inclusive no Brasil. Certamente, por isso, a edição de "Mateus e Mateusa" que tenho em mãos, de 2004, da editora gaúcha Escritos, tente corrigir isso, apresentando uma edição bilíngue (em português e inglês). A edição é ainda ilustrada por litografias feitas por Adelheid Tomaselli.
Segundo a Wikipedia, algumas características do Teatro do Absurdo coincidem em muitas das peças: um sentido tragicômico, estrutura muitas vezes semelhante ao do Vaudeville, com quadros não necessariamente conectados; alternância entre elementos cômicos e imagens horríveis ou trágicas; personagens presas a situações sem solução, forçadas a executar ações repetitivas ou sem sentido; diálogos cheios de clichês, jogo de palavras e nonsense; enredos que são cíclicos ou absurdamente expansivos; paródia ou desligamento da realidade e artifícios da well-made play (peça bem-feita, regras dramáticas do século XIX de como se fazer uma peça).
"Mateus e Mateusa" apresenta um casal de idosos que vivem em atrito, numa esfera tragicômica. Como personagens há ainda as filhas do casal, que vivem puxando o saco do pai para obter regalias, e o criado da casa, que possui um pequeno mas interessante papel. O texto possui uma crítica velada a essas relações familiares e possui pequenos momentos nonsense (a relevação da origem do nome de Mateusa é, particularmente, hilária). Entretanto, não há um aprofundamento no texto, sendo uma peça curtíssima, o que reforça um sentimento de vazio motivacional, deixando, propositalmente, mais perguntas do que respostas.
Naturalmente, falo de uma crítica pelos olhos do leitor moderno, que sente falta de "algo mais". Entretanto, é fácil imaginar o impacto de um texto tão inusitado na sociedade gaúcha de 1866. Qorpo Santo não foi compreendido por seus contemporâneos.
Qorpo Santo tinha uma carreira pública respeitada como professor, jornalista e tipógrafo. Foi ainda vereador e delegado. Em dado momento, começou a apresentar os primeiros sintomas de distúrbios psiquiátricos, o que na época foi diagnosticado como monomania. Interditado judicialmente a pedido da própria esposa e de seus filhos, revolta-se e parte até o Rio de Janeiro, onde foi avaliado pelo médico do Imperador Dom Pedro II João Vicente Torres Homem. Obtendo dele uma boa avaliação médica, ainda assim, a interdição persiste, por determinação de um juiz chamado Correia de Oliveira. Tal situação afeta sua reputação. Qorpo Santo se isola e abandona a carreira jornalística, alegando perseguição ideológica, e até mesmo a de escritor por um tempo. Passa por dificuldades financeiras. Nos últimos anos de vida, contudo, constitui sua própria gráfica onde publica suas obras até morrer de tuberculose, aos 54 anos.
Qorpo Santo possui uma trajetória inusitada e interessante na literatura brasileira. Influente, estava bem afrente de seu tempo e merece ser mais conhecido pelo grande público, principalmente no Brasil, seu país de origem. Uma boa leitura.
(SANTO, Qorpo (José Joaquim de Campos Leão): ilustrações de Adelheid Tomaselli; tradução para o inglês de Valéria Brisolara Salomon. Mateus e Mateusa. Porto Alegre: Escritos, 2004, (edição bilíngue), 88 páginas)
P.S.: Resenha escrita em agosto de 2019.