"O navio branco" de Tchinguiz Aitmátov: quando se tenta manter vivas a tradição e a inocência num ambiente violento
Livro "O navio branco" do escritor quirguiz Tchinguiz Aitmátov. Lançado originalmente em 1970, a obra foi publicada no Brasil pela editora Brasiliense em meados de 1991.
O livro conta a história de um garoto que sonha em conhecer o pai, supostamente um marinheiro em viagem. O menino é criado por seu avô materno, o bondoso Momun, que tenta transmitir para o neto a mitologia de seu povo, tentando tornar a realidade triste e pobre em que vivem mais alegre e esperançosa. Porém, a presença de Orozkul, tio do garoto, um homem violento, agressivo, representa uma ameaça constante.
Na década de 1970, o Quirguistão não era um país independente; era uma das repúblicas que compunham a então União Soviética (URSS). Havia um controle rígido do que era publicado naquele país. Segundo Paulo Bezerra, que traduziu e assina o prefácio, considerado um dos maiores especialistas e tradutores de literatura russa no Brasil, os escritores soviéticos, ao longo da década de 1960, vinham de um ciclo do chamado "realismo soviético", com foco na realidade e nos problemas e questões contemporâneas. Ao publicar "O navio branco", Aitmátov promove um tipo de ruptura, ao focar a história no folclore, na mitologia, e também por substituir a figura do "herói tradicional", geralmente um personagem jovem que não conhece a dúvida, por idosos e crianças, quase sempre, então, relegados à periferia da narrativa. O livro fez muito sucesso quando foi publicado, servindo de estímulo para esse processo de renovação, por assim dizer, na literatura soviética. Entretanto, esses nuances só se tornaram conhecidos fora da URSS a partir do final da década de 80, com a implementação da política da Glasnost por Mikhail Gorbachev, que permitiu maior liberdade de expressão para a população.
Há em "O navio branco" uma crítica ao regime que governava a URSS, representada na figura do personagem Orozkul. Ele é um guarda-florestal que, em diversos momentos, ganha dinheiro traficando madeira ilegal. Analogias são possíveis entre o personagem e os oficiais soviéticos que lidavam diretamente com o povo. Violento e frustrado, Orozkul dedica boa parte de sua fúria para Momun e o garoto, relembrando com saudosismo os piores momentos do stalinismo.
Orozkul como opositor de Momun e o garoto representam um embate entre diversos pontos díspares. De um lado, a candura, a bondade. Do outro lado, a realidade, a violência. De um lado, a tradição e a esperança. Do outro lado, a realidade dura. Para Momun e o garoto, a vida e o mundo só fazem sentido, só tem valor humano, quando se segue a tradição, respeitando-se os legados ancestrais transmitidos oralmente, nas quais se destaca a figura da Mãe Cerva-Galhuda, o ancestral totêmico da tribo dos bugus que, segundo o folclore, são os fundadores da nação quirguiz. Qualquer desrespeito à tradição, visto por esse ângulo, só pode resultar em brutalidade, visto que Aitmátov apresenta Momun e o garoto como sinônimos de humanidade.
É ingênuo e desonesto ignorar o fato de que o regime da URSS cometeu atrocidades. A crítica de Aitmátov, velada (e, talvez por isso, ruidosa) é pertinente e necessária. Contudo, a agressividade de Orozkul é tamanha que chega a ser caricata, visto que Aitmátov não se dedica a buscar raízes para isso, ainda que tente, aparentemente.
Um fato que merece ser citado é a ambientação da obra. Aitmátov descreve com esmero as plantas, árvores, rios, montanhas, o ar, enfim, todas as características belas de Tian Shan, complexo de cordilheiras que marcam boa parte da paisagem do Quirguistão. Juntamente com o Tian Shan, destaca-se o Issyk-Kul, gigantesco e bonito lago salgado localizado no país e que tem papel relevante na narrativa.
"O navio branco" representa uma boa amostra da literatura produzida no Quirguistão e deve ser conferida pela humanidade, ambientação e reflexões que proporciona, ainda que de forma, por vezes, pueril e caricata. Um ótimo livro.
(AITMÁTOV, Tchinguiz: introdução e tradução de Paulo Bezerra. O navio branco. São Paulo: Brasiliense, 1ª edição, 1991, 171 páginas. Título original: Biélyi porokhód.)
P.S.: Resenha escrita em julho de 2019.