Diário das minhas leituras/40

06/09/2019 – O NOVO CONTO BRASILEIRO 2

Prosseguindo a leitura, encontrei o Herberto Sales com “O caapora”, que revive um mito folclórico do interior do país. Depois vem Anna Maria Martins, escritora de quem eu ainda não havia ouvido falar, com “Juventude”, uma narrativa escrita em grande parte em primeira pessoa, a qual é uma adolescente típica, em conflito com os pais. Achei que a leitura poderia agradar a uma adolescente de fato, mas não chegou a atingir o adolescente que há em mim. Elias José, também meu desconhecido, comparece com “Um estrangeiro muito estranho”, que é também um conto muito estranho sobre um sujeito inglês que vem ao Rio de Janeiro para se encontrar pela primeira vez com um amigo de correspondência, ocasião em que é obrigado a aturar os inusitados costumes daquela família brasileira, que segue achando que o normal é aquilo que ela faz. Luiz Fernando Emediato aparece com “A origem dos anéis de Saturno”, em um estilo que não cai no meu gosto pessoal (gosto das crônicas que ele escreveu). Depois vem um conto de Moreira Campos, “Três meses”, e confesso que me atrapalhei na tentativa de compreendê-lo. Sônia Coutinho é a escritora seguinte, com “Darling, ou do amor em Copacabana”, que tem experimentações de estilo ao tratar de uma história de quase amor. Também é uma história amorosa, com a frustração que não raro lhe acompanha, o que Marcos Rey faz em “Sonata ao luar”. Caio Fernando Abreu vem com uma interessante proposta em “A margarida enlatada”, conto que dá muito o que pensar a respeito dos efeitos da publicidade. Wander Piroli é o autor de “Crítica da razão pura”, história de um conflito que leva a uma tragédia, mas de forma inesperada. Foi o que li até agora do livro, mas devo dizer que não estou gostando tanto dele quanto gostaria. Bem poucos contos conseguiram me sensibilizar de algum modo.

07/09/2019 – KURT VONNEGUT

Três trechos ditos por um personagem de Vonnegut no conto “Vista e usa”, expressando opiniões que não são muito diferentes daquelas que carrega comigo, se bem que mais exaltadas:

“A mente é a única coisa do corpo humano que tem algum valor. Por que tem de estar presa a um saco de pele, sangue, cabelo, carne, ossos e tubos? Não admira que ninguém consiga fazer nada, amarrado pelo resto da vida a um parasito que precisa ser entupido de comida e protegido do tempo e dos germes em todos os momentos. E a porcaria se gasta de qualquer maneira, por mais que a gente a alimente e proteja!”.

“Quem é que realmente quer um negócio deses? Que é que há de tão formidável nesse protoplasma de que somos obrigados a carregar não sei quantos quilos, aonde quer que vamos?”.

“Se a matéria viva pôde evoluir o suficiente para sair do oceano, que, na verdade, era um lugar bastante agradável para se viver, não há por que não possa dar outro passo e sair de um corpo, que não é senão um transtorno, pensando bem”.

07/09/2019 – O NOVO CONTO BRASILEIRO 3

Na sequência, apareceram três nomes dos mais representativos da literatura brasileira no que se refere à segunda metade do século XX: Moacyr Scliar, Murilo Rubião e Dalton Trevisan. “Rápido, rápido” é o conto do Scliar, a respeito de um sujeito que sofre de “progéria”, a doença que provoca o envelhecimento da criança, mas nesse caso levado a um nível absurdo em que todo o processo, desde o nascimento até a maturidade e à velhice, é comprimido em um único dia. Cria-se, portanto, um relato surrealista dos mais empolgantes. Gosto bastante do Scliar. Gosto de quase tudo o que já li dele. Esse conto provavelmente será o meu favorito do livro. Já o Murilo Rubião, é um nome que eu sei ser muito celebrado, mas o conto “O edifício” foi a primeira coisa que li dele. Achei a proposta bastante interessante dessa “alegoria séria e uma sátira mais trágica que cômica”, como foi dito na introdução. Recordou-me das alegorias do Kafka. É possível que eu pegue um livro dele para ler até o final do ano. Do Dalton Trevisan, eu já li dois livros de contos, ainda para o vestibular, e, honestamente, não faz o meu tipo. Esse ano, porém, li e gostei muito do conto “Penélope”. Nessa coletânea, porém, o conto presente é “Peruca loira e botinha preta”, de estilo que não é também a minha praia. Depois dessa trinca de escritores célebres, vem Victor Guidice, que é um desconhecido para mim. “A lei do silencio”, seu conto, é realmente impactante, pois, ao mesmo tempo em que se relata um crime de forma fria e crua, há toda uma preocupação por parte do assassino (trata-se de um feminicídio), e inclusive do policial que, supostamente, deveria prendê-lo, com coisas que não dizem nenhum respeito ao crime, como se ele fosse algo sem muita importância (o comportamento pode muito bem ser atribuído ao mundo daqueles machos que, em certas circunstâncias, acham até legítimo que tal coisa seja feita, usando uma absurda noção de honra). Mata-se uma mulher, ouvem-se os tiros na vizinhança e o policial vai até lá e, mesmo vendo o corpo, atém-se à “violação da lei do silêncio”. Forte! Na sequência vem o Orígenes Lessa, com quem simpatizo muito desde que li “O feijão e o sonho”. Seu conto é “A boina vermelha”, que mostra uma cena amorosa, ou quase, nascida de um encontro casual no bonde. Depois vem Deonísio da Silva, que eu até tenho no Facebook como amigo, mas a primeira coisa que li dele foi mesmo esse conto “O semeador ou tudo de novo no ano novo”, que também não foi muito do meu agrado. O Ricardo Ramos aparece então com “Volteio”, conto que também não apreciei muito.

07/09/2019 – O NOVO CONTO BRASILEIRO 4

Continuando, li o Otto Lara Resende com “Viva la patria”, conto bem sóbrio e bem escrito, mas que não me empolgou, a exemplo do seu romance “O braço direito”. Das poucas crônicas do Otto eu gosto. Após o conto dele, veio “Bravura”, da Nélida Piñon, que não me chamou a atenção. Edilberto Coutinho, que é um escritor que eu conheci este ano com o ótimo “A hospedeira”, aparece nessa coletânea com o conto “Preliminar”, que é também uma boa pedida ao tratar da paixão do futebol para fazer esquecer as agruras de uma vida às portas da miséria e, ao mesmo tempo, para direcionar a esperança de salvação, por meio de uma eventual vitória na loteria esportiva. Lygia Fagundes Telles surge com “Senhor Diretor”, que, ainda que não me tenha me entusiasmado tanto quanto “A confissão de Leontina” e “As pérolas”, mostra igualmente a grandeza da escritora, talvez o maior nome da literatura brasileira que ainda vive. Dela eu quero ler um livro próprio até o final do ano, como já fiz há muito tempo. Antônio Bulhões aparece com o conto “Valsa”, mas eu mesmo nem chamaria de conto, está mais para uma crônica que busca recriar um determinado passado do Rio de Janeiro. Porém, ainda que classificada como crônica, a leitura não seria mais fácil, dada a quantidade de descrições. O célébre Rubem Fonseca comparece com o conto “Feliz ano novo”. Dele eu já li alguma coisa. Gosto principalmente da agilidade da sua linguagem, mais do que de seus temas. Mas ainda preciso ler um livro de contos só dele. Gilvan Lemos é o autor de “Ponte da Boa Vista”, que, apesar da temática sensível, não me tocou muito. Mal sabia eu que dois dos melhores momentos do livro, para mim, estavam reservados para o final. Domingos Pellegrini surge com “A maior ponte do mundo”, uma grande história a respeito de um eletricista, e seu alicate, contratado (bem, pode-se dizer quase “sequestrado”) para trabalhar na construção da ponte Rio-Niterói, em jornadas absurdas e desumanas. Eu leria tranquilamente um romance inteiro só com essa temática e na escrita que Domingos Pellegrini apresenta neste conto. O outro momento é com o conto que encerra a antologia, “Sabe quem dançou?”, de um Júlio César Monteiro Martins que ainda me era desconhecido. O conto apresenta uma linguagem recheada de gírias, e nem podia ser diferente, pois se trata de um surfista que acaba atraído, sem se dar conta, para o tráfico de drogas. Muitas vezes eu tenho dificuldade com as experimentações na língua, e inclusive com a temática da violência, mas a leitura desse conto só me deu prazer e eu pude “entrar” na história e me sentir envolvido com o drama do personagem. Gostei mais até do que do conto do Rubem Fonseca presente nesse livro. De maneira que o livro terminou de forma mais positiva para mim do que fazia acreditar a leitura até então. Espero achar uns livros assim quando me dedicar a ler só os livros da literatura brasileira contemporânea, como pretendo fazer daqui a algum tempo.

07/09/2019 – O NOVO CONTO BRASILEIRO (RESUMO)

Coletânea que reúne 36 escritores brasileiros vivos em 1985 e destinada ao público estrangeiro que vive no Brasil, mas sem empecilhos, naturalmente, para a leitura de nativos, bastando que esses apenas não se atenham aos exercícios após os contos. O livro começa com uma pegada mais humorística, pois ali estão nomes como Luis Fernando Verissimo, Fernando Sabino e Millôr Fernandes, e depois vai se tornando mais complexo, pois era essa justamente a proposta do livro. Nomes ainda hoje bastante célebres se sobressaem entre os autores, como Moacyr Scliar, Murilo Rubião, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca e José J. Veiga, mas há também vários outros que hoje não são muito conhecidos e que, por isso, merecem também a atenção do leitor. Certamente há contos que agradarão menos do que os outros, mas convém que o leitor insista na leitura, pois justamente os dois últimos contos, de Domingos Pellegrini e de Júlio Cesar Monteiro Martins, são fortes candidatos a cair no gosto do leitor.

11/09/2019 – GUIMARÃES ROSA

Não anotei à época da leitura as minhas impressões sobre “Grande Sertão: Veredas”. Mas posso falar sobre como me parece ser a leitura desse romance. Há uma inevitável dificildade inicial. Mas chega uma hora em que o estranhamento com a linguagem do autor diminui e você começa a se envolver com a história. Na parte final do livro, provavelmente você já estará lendo avidamente em busca do desfecho. Mas é preciso não ter a ilusão de que se irá entender todas as palavras e expressões.

11/09/2019 – RACHEL DE QUEIROZ

Também não anotei minhas impressões sobre “O Quinze”. Sei apenas que achei que os comentários sobre o livro na edição que eu peguei davam excessivo destaque à história de Conceição e Vicente, como se a obra fosse meramente mais uma história de amor.

11/09/2019 – DYONÉLIO MACHADO

Uma pena também não ter escrito nada sobre “Os ratos”. Alguns destacam o final do livro, há até quem só tenha se entusiasmado nessa parte, mas a minha lembrança é de uma boa narrativa em toda a trama.

12/09/2019 – JONATHAN SWIFT

Ligeiros comentários sobre “As viagens de Gulliver”: Há inúmeras possibilidades de análise do livro, mas no fim de todas elas a humanidade ficará no chão, estendida. Impressiona como aquilo que valia para a Inglaterra há 300 anos vale para qualquer canto do mundo hoje em dia também. A humanidade continua a mesma. Acho incompreensível que este livro seja destinado quase que exclusivamente às crianças. Apenas admira que, nessa crítica à condição humana em geral, pouco tenha se falado sobre a igreja.

12/09/2019 – BOCCACCIO

Salta aos olhos, ao longo das novelas de “Decameron”, o péssimo conceito que Giovanni Boccacio faz dos sacerdotes e líderes religiosos em geral. Os que apresenta ao leitor, certamente colhidos a partir de exemplos reais, estão muito longe de viver uma vida em santidade e voltada à espiritualidade. Ao contrário, entregam-se a vícios, são corruptos, avarentos e, sobretudo, lascivos. Na melhor das hipóteses, são ignorantes. Não demonstram um grande respeito ao sagrado e, por vezes, inclusive o usam de maneira a favorecer seus próprios apetites carnais. Mais do que a revelação da hipocrisia de sacerdotes no período medieval, no entanto, o que chama a atenção nas novelas de Boccaccio é que isto não representa uma ruptura na fé dos personagens. Todos tinham tais líderes em péssima conta, mas nem por isso deixavam de acreditar no Deus por eles pregado. É em uma igreja que os personagem se encontram, em meio à peste que grassava a Europa. E, mesmo depois que decidem partir para um local isolado, continuam a guardar os dias santos e a assistir os ofícios divinos. Fazem, pois, uma interessante separação entre os guias espirituais e a realidade divina. Em verdade, parecem acreditar que a religião enquanto instituição não é mais do que um empecilho para a volúpia do amor. E, para que esta se realize, estão justificadas, inclusive diante de Deus, todas as desonestidades possíveis. O livro, afinal, mais do que amor ou fé, é composto por burlas, e um final feliz é aquele em que a burla funciona ou não deixa suspeitas. É como se os personagens dessem um sentido absolutamente carnal à palavra de que o fim de toda lei é o amor. Uma vez que este amor se concretize, independente dos meios, consideram impossível que não estejam fazendo a vontade de Deus. São indomáveis os seus desejos e, na maioria das histórias, não há quem consiga vencer a si mesmo. Não admira que seja assim no ambiente em que os próprios sacerdotes não dão exemplo de que seja possível refreá-los. É curioso que nem toda a corrupção do clero tenha sido suficiente para diminuir a força da igreja – talvez seja como disse o judeu convertido de uma das novelas: se ela continua, apesar de todo o esforço dos homens para que pereça, então deve ser mesmo obra do Espírito Santo.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 12/09/2019
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