Diário das minhas leituras/39
01/09/2019 – HENRY JAMES
Depois de ter tido uma experiência mais ou menos boa com dois contos de Henry James, um escritor que, de certa forma, eu temia, resolvi arriscar e ler um livro de contos próprio do homem. Peguei então o “Até o último fantasma”, coletânea organizada pelo José Paulo Paes, que ao que parece se interessava bastante por literatura fantástica (é ele o organizador do ótimo “Maravilhas do conto fantástico”). Os três primeiros contos do livro do Henry James me pareceram muito bons, sobretudo “Os amigos dos amigos”. É sobre dois amigos em comum que tiveram a inusitada experiência de visualizar um dos seus pais no momento da morte, estando a milhares de quilômetros de distância. A coincidência de terem passados os dois por essa circunstâncias fez com que os amigos em comum quisessem que eles se conhecessem, e os dois mesmos desejavam de início, mas nunca, absolutamente nunca dava certo e, depois de algum tempo, talvez nem mesmo os dois se sentissem confortáveis em um encontro como esse. A narradora da história deseja se casar com o homem e aproveita a ocasião para, finalmente, organizar um encontro entre os dois. Porém, ela é assomada pelo ciúme, passa a acreditar que os dois vão se entender de uma forma tão maravilhosa que ela vai ser largada, e por isso ela mesma dá um jeito de furar o encontro. Bem, mas naquela mesma noite a mulher, sua amiga, tem um treco e passa dessa para a melhor. Depois ela descobre que ela chegou a estar na casa do seu noivo. Para o noivo, isso se deu antes dela morrer, e para ela se deu já depois de morta. O ciúme continua mesmo depois da morte, tanto mais que, pelo que se dá a entender, a morta continuou fazendo visitas ao homem com quem tinha tanta coisa em comum. Um enredo interessante, uma escrita erudita, mas perfeitamente lível e compreensível em sua essência. Antes, havia o conto “Sr Edmund Orme”, também bem interessante, sobre um suicida que aparece para uma família a fim de evitar que uma nova deilusão amorosa cause a outro homem o mesmo mal que a ele um dia foi causado. Primeiro aparece só para a sogra, depois para o pretendente da filha e, por fim, à própria filha. Gostei do conto. “A coisa realmente certa” não foi tão do meu agrado assim, mas não deixou de ser curioso ler sobre um morto que, aparentemente, se esforçava para expor a sua contrariedade à sua esposa e ao seu amigo que lhe escrevia a biografia. Esses três contos foram agradáveis de ler. Mas depois disso, vem “O grande e bom lugar” e “A bela esquina”, dos dois contos mais difíceis que já li. São exatamente o tipo de texto que eu temia encontrar em Henry James. Não estou à altura deles, são muito complexos, eruditos e herméticos para a minha capacidade intelectual. É incrível como se pode ler textos em português e, mesmo assim, ter a sensação de que foram escritos em um idioma que não se domina. Eu não domino o idioma em que Henry James escreveu esses contos. Não entendi praticamente nada do primeiro conto e o segundo eu larguei antes da metade, porque, afinal, a leitura deve dar algum prazer, e não ser feita de forma arrastada. Embora não seja o mesmo estilo, lembrei-me dos contos do Onetti, que também me faz sentir um perfeito analfabeto. Como os contos do Henry James foram organizados em ordem cronológica, tendo a achar que os contos mais agradáveis deles são os primeiros e que, ao longo dos anos, se tornou incompreensível para sujeitos como eu, que não compartilham da sua inteligência.
04/09/2019 – LEONID ANDREIEV
Já que ainda não saiu um livro decente do homem por aqui, é preciso buscar pela internet. Li outro conto desse fantástico russo, “A mentira”. Trata-se de um homem obcecado em fazer com que a sua amada lhe conte “a verdade”, o que, para ele, é igual a confessar que não o ama ou que ama a outrem. A própria mulher não parece muito certo do que sente, e há indícios de que, no mínimo, o homem não era o único a quem ela dispensava grandes afeições, mas ele queria ouví-la confessar pelos próprios lábios, não podia suportar a dúvida de que estava sendo enganado. Bem, ele acaba matando a mulher, achando que, com isso, terminaria o seu problema com a “mentira”, mas o tempo não demora a mostrar o problema ainda estava lá, e agora ele até se culpava por ter matado a mulher antes de ouvir dela “a verdade”. Um louco, como se vê, e é precisamente como conto de loucura que este é vendido. Esse, se não chega a ser um conto que reputo como “ótimo”, é no mínimo bom. As estatísticas do Andreiev são bem positivas, pois, dos 9 contos que li dele, 3 eu classifiquei como ótimos, 5 como bons e só um como ruim. Lerei mais dele.
05/09/2019 – O NOVO CONTO BRASILEIRO
“Novo”, no caso, se refere, a 1985. É uma antologia organizada por Malcom Silverman e direcionada aos estrangeiros que viviam no Brasil, como forma de proporcionar a eles um melhor conhecimento sobre a literatura, a língua e, de quebra, o país. Curiosamente, a disposição dos 36 contos é feita não por ordem alfabética ou cronológica, mas por ordem de “complexidade”. Os primeiros contos são aqueles em que o humor dá o tom. O primeiro é “Bananas”, de Duílio Gomes, escritor sobre o qual não se ouve mais falar. Uma história divertida sobre um aficionado por bananas que pega um táxi, terminando com a sugestão de que fosse um macaco ou coisa parecida. Depois vem o Luis Fernando Verissimo com “Lixo”, seguido do Fernando Sabino com o clássico “O homem nu”. Os contos de Verissimo e Sabino podem muito bem ser visto como crônicas, e não contos. Há certamente parentesco entre os gêneros, mas tenho para mim que a crônica tem, entre as suas peculiaridades, a absorção de outros gêneros e subgêneros, dos quais o conto é um dos mais proeminentes. Já vi leitores de contos diminuírem ou menosprezarem os textos que Verissimo e Sabino fazem, e isso, provavelmente, por verem neles uma temática cotidiana demais para o que eles esperam da literatura. Mas é justamente a temática cotidiana que faz a fama da crônica. Se os textos dessa dupla possuem menos valor como conto – e eu não sei se concordo com isso, estou apenas levantando a hipótese –, eles são claramente valorizados enquanto crônica. Os dois autores estão entre os mais célebres cronistas, embora sejam, também, os que mais se valem de elementos característicos do conto para a feitura do seu texto e que, involuntariamente, mais contribuem para essa dificuldade de separar uma coisa da outra. Pessoalmente, reputo seus textos como crônicas que se valem do conto. No mesmo livro, mais para frente, há um texto do Millôr Fernandes (“O banheiro”) que é uma crônica típica, não havendo qualquer semelhança com o conto, de maneira que não se entende a inclusão em tal obra, a não ser, é claro, pelo prazer que é ler um texto do autor. Temos ainda o Rubem Mauro Machado com o seu “Conversa de viagem”, que é um texto também voltado ao humor, e até bem direcionado – no caso, à célebre ignorância dos moradores dos Estados Unidos sobre a realidade brasileira. Sérgio Sant’Anna, que é um dos mais célebres contistas brasileiros na atualidade, participa com “O pelotão”, texto que foi o primeiro que li dele. Apesar da sugestão de uma mensagem antimilitarista que pode ser tirada do conto, ele não chegou a me tocar de alguma maneira. Achei interessante o uso de certo “refrões” para iniciar as frases, falando sobre as ações do pelotão. “Felicidade”, do Luiz Vilela, pareceu-me bem legal, apesar de, pelo que li, não ser muito característico, pelo estilo, da produção do escritor. É um único parágrafo sobre a festa de aniversário de um sujeito, expondo, na verdade, todos os absurdos a que os aniversariantes se sujeitos nessas ocasiões, despertando deles o desejo de fugir e ficar sozinho. José J. Veiga, com o seu “A maquina extravida”, é um dos melhores momentos do livro até agora. Um dia aparece repentinamente uma máquina em uma cidade do interior, sem que ninguém saiba para quem era destinada e tampouco qual era a sua utilidade. Ela não demora a se tornar a sensação da cidade e, pelo que se percebe, não iria longe o momento em que passaria a ser venerada como um deus. “São João mão única” é um conto do Ignácio de Loyola Brandão expondo as agruras urbanas de um trânsito caótico. Também escrito em um só parágrafo. Edla van Steen apresenta em “As desventuras de João” uma história amorosa que é, em essência, constituída de diálogos e cujo conteúdo leva à frustração das expectativas. E o último que li até agora é “O menor”, da Tânia Jamardo Faillace, conto de forte conteúdo social a partir das injustiças a que um “moleque”, pouco mais do que uma criança, passa na rua e como isso influencia o seu destino.
05/09/2019 – KURT VONNEGUT
Como é bom encontrar um daqueles escritores que nos fazem vibrar! Eu ouvi falar sobre esse Vonnegut no começo desse ano e havia me interessado, mas só agora me lembrei dele e emprestei um de contos: “O mundo louco ou Bem-vindo à casa dos macacos”. É um daqueles escritores que não parecem presos a algum amarra literária. Ao seu espírito libertário é aliada uma criatividade que impressiona, sobretudo quando ele se põe a escrever contos sobre “o futuro”. “Harrison Bergeron”, o primeiro conto do livro, já é bastante marcante. Trata-se de uma sociedade, em 2081, no qual as desigualdades foram suprimidas, só que nem por isso o cenário era favorável à humanidade. Ao contrário, era preciso um “nivelador” para garantir que as pessoas mais inteligentes “pensassem menos”. Isso era feito por meio de um aparelho conectado à cabeça de sujeito, que a cada vinte segundos emitia um barulho estridente aleatório (um tiro, uma batida de carro, vidros quebrando, etc). Sob esse regime, realmente, a pessoa perde a vontade de pensar. Vonnegut faz muito isso, isto é, mostrar que o resultado dos nossos objetivos hoje podem, futuramente, não se mostrarem tão bons assim. Em outro conto fantástico, nos dois sentidos, “A questão do eufone”, ele faz ver que mesmo uma felicidade extrema e irrestrista pode não ser tão benéfica como imaginaríamos. A maneira como Vonnegut faz ficção científica me agradou bastante, uma vez que há certa margem para o humor, mas sem que, com isso, se perca de vista uma mensagem sobre os lugares a que o nosso desenvolvimento, seja tecnológico ou social, está nos levando. Ele chegou ao ponto de problematizar, no conto “Vista e use”, o incômodo e o transtorno que representa o corpo humano, sempre a exigir cuidados que tomam todo o tempo que poderia ser destinado aos assuntos da mente. Esta é uma questão que já me havia ocorrido há algum tempo e agora eu a encontrei exemplarmente representada no conto de Vonnegut, no qual um grupo de pessoas, inclusive, tem a habilidade de sair dos seus corpos (são os “anfíbios). Em termos filosóficos, foi o conto que mais me agradou. A interação com as máquinas inteligentes também rendeu uma excelente história, assim como o prolongamento da expectativa de vida. No conto “Para todo o sempre”, as pessoas podem viver praticamente indefinidamente, e só morrem no momento em que realmente desejarem, mas quem é que disse que elas desejam? Excelente exercício de imaginação que pode muito bem ter antecipado alguns problemas de uma sociedade futurista. Mas não há apenas projeções científicas, pois contos como “A carteira do Sr. Foster” evidenciam a humanidade de forma triste, mas ainda bonita, depois de desvendadas as esquisitices nossas de todo dia. Há ainda um drama sensacional em “O tabuleiro vivo”, um jogo de xadrez em que uma parte das peças é composta por prisioneiros de guerra, sendo que a partida valia a vida deles – uma peça “comida” é igual a uma pessoa morta. Daqueles contos que se lê com sofreguidão para conseguir descobrir o que aconteceu. Há ainda “Relatório sobre o efeito de Barnhouse”, que também brinca com uma possibilidade futurista, que é, em verdade, já acreditada por muitos hoje em dia, mas levada a um nível nunca antes visto: a “força da mente”. E a linguagem é tão cativante ao longo do livro tudo que, no fim das contas, não há como não dar cinco estrelas para ele. Acho que descobri mais um escritor de cabeceira. Estou informado de que o seu livro “Matadouro-Cinco” é antimilitarista e, em consequência, pacifista. Aí é pedir para eu amar de vez.