Edgar Allan Poe em desfilo

EDGAR ALLAN POE EM DESFILE
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “Poemas e ensaios” de Edgar Allan Poe. Editora Globo, São Paulo-SP, 3ª edição, 1999. Tradução: Oscar Menes e Milton Amado. Revisão e notas: Carmen Vera Cinira Lima. Inclui o artigo biográfico “Edgar Allan Poe”, de Charles Baudelaire.

Há quem tenha chamado Poe (1809-1849) de “o pai de todos” pois após ele a literatura nunca mais foi a mesma. Modernizou a poesia e chegou a escrever pequenos poemas épicos. Desenvolveu o conto policial em suas vertentes principais, a do detetive e a do crime em si. Antecipou as histórias detetivescas de Conan Doyle e as narrações científicas de Júlio Verne. No terror e no fantástico foi um mestre incontestável.
Baudelaire foi o literato francês que popularizou Poe na Europa, contribuindo assim para a fama imorredoura, porém póstuma, do gênio norte-americano. Seu artigo é deveras relevante. Baudelaire analisa com sagacidade a maneira de escrever de Poe; “Nele é atraente toda entrada em assunto”. “Sua sobriedade surpreende e mantém o espírito alerta. Sente-se, desde o princípio, que se trata de algo grave. E lentamente, pouco a pouco, se desenrola uma história cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma hipótese audaciosa, sobre uma dosagem imprudente da Natureza no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadoras deduções”.
A primeira parte dessa compilação refere-se aos poemas de Poe, que são poucos porque extremamente burilados. Dois deles, “Tamerlão” e “Al-Aaraaf”, chegam a ser épicos apesar de pequenos diante de “Os Lusíadas” por exemplo, mas as histórias narradas são épicas, além de extremamente tristes.
Tamerlão (1335-1406) foi um conquistador asiático, turco-mongol, dono de um dos mais extensos impérios da História e célebre por suas matanças e crueldades. No entanto Poe, genialmente, o humaniza, quando o põe a confessar a um padre o tortuoso caminho que o levou a renegar o seu amor de juventude, o terno e ardoroso amor de uma mulher, em troca da glória e do poder:


“Ó amor humano! Tu que dás no mundo
o que esperamos vir do céu profundo;
que cais na alma qual chuva abençoada,
sobre a planície adusta e calcinada;
e, não podendo dar ventura, fazes
do coração deserto seu oásis;
tu, ideia que toda a vida encerra
em música de tons tão singulares
e belos, que na selva têm seus lares,
adeus! adeus! pois conquistei a Terra!”


É lírico, sublime, porém trágico este longo poema, onde Tamerlão expõe a sua sina de homem que amou e foi amado e tudo deixou para trás; deixou o sentimento que é, no seu dizer, “ideia que toda a vida encerra”. Para se dedicar à sede de conquista, de poder, de tripúdio.
Já “Al-Aaraaf” é um poema cósmico de difícil compreensão e análise, uma ficção científica que conta uma história sublime passada em parte num mundo distante e fantástico:


“Para Nesace era esse um tempo abençoado
pois de quatro bulhentos sóis bem perto
o seu mundo oscilava no ar dourado...”


Surpreendente é o “Hino”, também chamado de “Hino católico”, uma pequena e linda página de amor para com a Virgem Maria:

“Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo,
de lá dos altos céus, do teu trono sagrado,
para a prece fervente e para o amor singelo
que te oferta, da terra, o filho do pecado.”


Muitas outras observações eu poderia fazer em torno da sublimidade da obra poética de Poe, desde “O corvo”, passando por “A cidade no mar” e “O vale da inquietude”, versos perturbadores, que parecem se referir a sagas pungentes de tempos antigos. “Ulalume” então é uma obra-prima que dá vontade de desenvolver descortinando a origem de tal drama:

“Doce irmã”, perguntei, “dessa porta
que tragédia a legenda resume?
“Ulalume! — responde ela. “Ulalume!”
“Essa é a tumba perdida de Ulalume!”


Quanto aos ensaios, a parte mais difícil da obra de Poe, o autor discorre eruditamente sobre a técnica poética, cita muitos autores e explica, em “A filosofia da composição”, o processo de criação do célebre poema “O corvo”. Há também trechos de textos publicados na imprensa sob o título “Marginalia”.
O mais importante, porém, é “Eureka”, que leva o subtítulo “Ensaio sobre o universo material e espiritual”. Do tamanho de um pequeno livro, é uma obra de Cosmologia na qual Poe desenvolveu uma verdadeira teoria sobre a natureza do universo, sua origem, seu fim último e sua relação com Deus. Obra notável e surpreendente, reveladora da inteligência superior do literato, que mostra inclusive ter conhecimento do universo das galáxias, só de fato reconhecido pela Ciência quase um século depois.
Livro imperdível.

Rio de Janeiro, 27 de novembro a 1º de dezembro de 2016.