Diário das minhas leituras/36

04/08/2019 – ANTOLOGIA PAN-AMERICANA 2

Termine de ler os contos escritos originalmente em português nessa antologia das Américas, ou seja, só os brasileiros. Incrível como praticamente não gostei de nenhum. Nomes mais badalados da literatura brasileira contemporânea, como Alberto Mussa (“O rapto do fogo”) e Luiz Ruffato (“A solução)” não me causaram nenhuma comoção, e posso dizer até que causaram bem pouco prazer na leitura. Isso, claro, não significa que eles sejam “ruins”, significa apenas que o estilo deles (ou o estilo desses contos) está muito longe de se alinhar com o meu (como não sou crítico literário, tudo o que escrevo diz respeito só às minhas preferências pessoais). O que mais gostei talvez tenha sido “Hereditário”, de Amilcar Bettega. “Olhos azuis”, de Miguel Sanches Neto, também me desceu melhor, mas eu me lembro que esse conto está em um livro do autor que eu abandonei há muitos anos. “Redemunho”, de Ronaldo Correia de Brito, também teve alguns momentos de que gostei. Outros contos houve de que não gostei nada ou de quase nada. Tenho a impressão de que entre esses escritores contemporâneos há uma preocupação quase obsessiva com a forma, que não deve, jamais, ser a tradicional, e no meio desse processo, que é o de ousar, entram também o palavrão, a violência e o sexo. É apenas uma impressão, mas se ela persistir eu terei muita dificuldades em 2021, ano em que pretendo ler apenas os contemporâneos brazucas.

06/08/2019 – MARGARET ATWOOD

Ah, mas nem tudo são más impressões na leitura “Antologia Pan-Americana”. Da canadense Margaret Atwood eu só havia lido o agora célebre “O conto da aia”, que li um pouco antes de entrar na moda. Mas eu não havia gostado muito do livro, embora reconhecesse a importância da mensagem. Pois agora eu li um conto dela de que gostei muito, o que mais gostei do livro até agora. Chama-se “Peso” é um conto que fala sobre violência doméstica contra a mulher, chegando até ao feminicídio. Ao longo da trama, em que duas narrativas se intercalam, várias outras questões referentes à luta feminina por igualdade são apresentadas e os pontos de vistas são interessantes e, mais do que isso, relevantes num tempo como o nosso. Além disso, a linguagem flui naturalmente, ao contrário de boa parte dos contos desse livro. Enfim, fiquei feliz por gostar de um conto dela e agora acho até que vou arriscar a ler um livro de contos só dela.

06/08/2019 – ANTOLOGIA PAN-AMERICANA 3

Já li os contos voltados às línguas holandesa e francesa, que, por mais que não nos lembremos, também são faladas em nosso continente. O primeiro foi “Uma coisa é triste”, de Frank Martinus Arion, que é de Curaçao. Eu me interessei por esse conto porque ele trata das impressões de um nativo das Antilhas Holandesas quando vai para a Holanda. Gosto muito desse tipo de “comparação” entre os lugares. Mas isso não é exatamente o que eu chamaria de conto, tanto mais que é narrado em uma primeira pessoa que parece ter muito do próprio escritor. Seja como for, foi bacana ler. Logo em seguida vem outro conto praticamente nos mesmos moldes. Ellen Ombre, do Suriname, faz em “Viagem” um relato que me parece francamente autobiográfico sobre uma viagem feita a Benin, na África. Achei as comparações culturais ainda mais instigantes que no conto anterior. Fico contente quando consigo aprender um pouco mais sobre as culturas desses lugares e esse é um dos méritos desses textos que não seriam contos segundo o modelo tradicional. Gostaria de ler mais dessa autora, mas onde é que vou achar? Talvez lá no Suriname. Esses são os dois contos do livro escritos originalmente em holandês. Em seguida estão os franceses e o único que me chamou a atenção é, adivinhem só, também um conto de viagem e que está mais para memórias do que para contos. Acho que eu devia ler mais esse tipo de livro. É “Passagem só de ida”, de Dany Laferrière, do Haiti, em que o narrador, que deve ser também o autor, fala sobre a sua chegada ao Canadá (aparentemente um exílio) justamente por ocasião das Olimpíadas de Montreal, em 1976. Muitas comparações são feitas entre o modo de vida do haitiano e o do canadense. A forma de se buscar independência era um dos pontos divergentes, pois no Canadá haveria um referendo a respeito da separação do Quebec, ao passo que, no Haiti, havia sido necessária uma verdadeira guerra. Mas, claro, não se trata de texto laudatório aos canadenses, apenas comparativo, e muito rico naquilo que oferece aos leitores, como eu, que pouco conhecem tanto do Haiti como inclusive do Canadá. Adorei.

08/08/2019 – ANTOLOGIA PAN-AMERICANA 4

Em relação aos contos originalmente em inglês desta antologia, também tive impressão muito boa. Eles já começam com o ótimo “Meu pai e o soldado confederado”, de Zee Edgell (de Belize), no qual uma mulher rememora, em primeira pessoa, agruras e dificuldades da vida que levava ao lado do pai e do seu avô no que imagino ser o interior de Belize. Depois vem o incrível conto da Margaret Atwood, do qual já tratei acima. Em seguida estão os americanos, que, assim com os brasileiros, são vários, sendo divididos por região do país. Richard Ford com “Reunião”, contando a história do encontro casual entre um ex-amante e o marido enganado, foi interessante. Jonathan Safran Foer com “Minha vida de cão” já não foi tanto assim, até porque está mais para ensaio ou mesmo crônica, que são gêneros muito apreciáveis, só não em livro de contos. Outro Jonathan, o Lethem, fez o admirável “O distopianista, pensando em seu rival, é interrompido por uma batida na porta”, que a mim me remeteu muito ao Borges (de todo o livro, o autor que mais me remeteu ao Borges foi um que escrevia em inglês). Conto bastante criativo e cheio das circunstâncias mágicas e metalinguísticas que observei no pouco que já li do Borges. Depois vem Steven Millhauser com “O atirador de facas”, que se trata disso mesmo que o título diz, e que prende a atenção de um jeito que é quase como se nós estivéssemos presenciando o espetáculo descrito. Um dos contos que mais gostei do livro. Lembrei-me de outro conto, “A mulher do atirador de facas,” do japonês Naoya Shiga, que também apreciei bastante. Sherman Alexie, em “Integração”, fornece uma visão necessária a respeito dos indígenas americanos e sua integração na sociedade. O autor é ele próprio indígena. Mais um Jonathan, o terceiro, Jonathan Franzen, escreveu “Laços e desenlaces”, que consegue flagrar quase o espírito de uma época no que se refere em como enxergamos os relacionamentos amorosos, com as expectativas e frustrações que colocamos em cima deles e, por fim, com o desejo de jogar tudo para o alto e tentar de novo com outra pessoa. São várias historietas curtas, algumas com personagens que se cruzam. Eu realmente gostei, mas não sei se conseguiria ler, por exemplo, um livro inteiro só com dramas nascidos dos relacionamentos modernos. Edwidge Danticat, uma escritora do Haiti que vive nos Estados Unidos, mostra em “A aparição” a perseguição contra haitianos. Há ainda mais alguns outros contos, e eu gostaria de destacar “Tá pensando que eu sou maluca dona?”, da jamaicana Olive Senior, composto por várias situações em que uma mesma pedinte aborda pessoas que param com seus carros no sinal e, mais até do que pedir dinheiro, expõe os dramas e as injustiças da sua vida, em jorro. Fato é que gostei mais dos contos escritos em inglês do que os escritos em espanhol e em português, o que me faz cogitar se por acaso o meu cérebro não foi literariamente colonizado. Acho que o problema são os “modernos”.

08/08/2019 – ANTOLOGIA DO CONTO PAN-AMERICANO (RESUMO)

A verdade é que conhecemos pouco, quase nada, do nosso continente. Principalmente se englobarmos a América Central e o Caribe. O que conhecemos sobre aqueles países? Um pouco sobre Cuba e Jamaica, no máximo, e, ainda assim, com muitos estereótipos. Não é todo mundo que sabe que na América há quem fale holandês e francês, por exemplo. Essa antologia tem o mérito de trazer escritos vindos desses lugares que a gente mal conhece. Há textos de Curaçao, do Suriname, da Guiana Francesa, do Haiti. Há outros de quem fala inglês e a gente nem sabe, como Belize, como Trinidad e Tobago. A seleção desse livro permite não apenas que saibamos o nome de ao menos um dos escritores desses lugares, mas que tenhamos experiências, ainda que curtas, bastante ricas sobre as culturas desses lugares. Há uns três ou quatro contos, dos 48 no total, que estão mais para “reportagens” ou “ensaios autobiográficos”. Por meio desses textos, sabemos melhor o que é para um haitiano estar no Canadá, ou para alguém natural das Antilhas Holandesas estar na Holanda, e até o que é para alguém do Suriname viajar para Benin, lá na África. Mesmo nos outros contos, naqueles em que há uma proposta realmente ficcional, não há como fugir das referências culturais de cada lugar, de maneira que lê-los contribui para diminuir a ignorância que nós temos em relação a esses vizinhos. Nem sempre os contos são fáceis, há experimentações que podem trazer dificuldades na leitura (e isso vale também para os escritores brasileiros presentes no livro). Porém, mesmo esses podem servir para melhor se entender a respeito de um país. O fato de todos os contos serem contemporâneos, feitos nos anos 90 e 00, também contribui para nos aproximar de cada escritor. O Brasil e os Estados Unidos contam com vários representantes, um para cada região. Há entre os americanos verdadeiras pérolas que são hoje pouco ou nada conhecidos entre nós. Isso inclui até um escritor indígena americano. Fico pensando se não valeria a pena também incluir textos de línguas não europeias que também são faladas por aqui. Um texto em crioulo, um texto em guarani, não sei. Talvez se achasse que o resultado fugiria bastante do “padrão” do livro, pois esses povos não têm preocupação de seguir os moldes da literatura estabelecida (o que pode ser muito bom), mas, de toda forma, talvez contribuísse para dar uma visão mais acurada do que vem a ser a América. De toda forma, são poucos os livros que abrangem a literatura desses países e só isso já deve bastar para que se dê uma lida neste.

13/08/2019 – DOROTHY PARKER

Tenho lido muitos contistas e gostado de vários deles, mas raros são os que chegaram a me entusiasmar como Dorothy Parker. Conhecia dois contos esparsos dela e agora pude ler “Big Loira e outras histórias de Nova York”, que deve ser a única dela em português e, a partir de hoje, citarei-o entre os meus livros favoritos. O que tem Dorothy Parker de tão especial? Bem, em um primeiro olhar ela é engraçada – muito engraçada. Cheia de sacadas irônicas (nunca me esquecerei dessa: “Vista da outra extremidade de uma sala comprida e pouco iluminada, a sra. Ewing era uma mulher bonita”), um humor muitas vezes mordaz, mas dirigido a pessoas que a gente acha que mereciam ser alvo mesmo (sobretudo contra as dondocas e seus preconceitos). A gente ri e se diverte com Dorothy Parker, mas ela não é apenas isso. Depois que a leitura avança, a gente percebe o quanto existe de tristeza e amargura em seu humor (como, aliás, deve haver em todo humor). Talvez o principal tema por trás dos contos da autora seja a incomunicabilidade nos relacionamentos, a partir da perspectiva feminina. As mulheres de Dorothy Parker se esforçam para chamar a atenção de seus parceiros para a sua necessidade de amor e entendimento, só que os homens estão sempre pensando em outra coisa – isso quando não estão pensando em outra pessoa. Os homens de Dorothy Parker evitam as “DRs” e querem, mesmo assim, que as mulheres estejam sempre lindas e alegres, mesmo que eles não ofereçam coisa alguma em troca. “Big Loira” é a tristíssima história de uma mulher a quem os homens negam o direito de se entristecer. Os contos de Dorothy falam de carências, de expectativas e de frustrações. Uma das qualidades mais impressionantes da autora é a sua produção de diálogos. São absolutamente magistrais. Todos nós já vimos aquelas conversas acontecerem, e todos nós já nos colocamos naqueles papéis, todos já fizemos aqueles “joguinhos” em nossos relacionamentos, e Dorothy os expõe com uma agilidade que é como se nós os estivéssemos vivendo novamente. Mesmo sendo feitos há quase 100 anos, não é difícil perceber o quanto há de contemporâneo nas conversas de seus personagens. Outro ponto em que Dorothy é soberba e domina como raros é o uso de “monólogos”. Há contos que são monólogos inteiros, com todas as variações de ideias que isso implica, e também aqui nós percebemos o quanto há de verdade neles, pois nós também já pensamos todas essas coisas em meio aos nossos relacionamentos. Fico imaginando como seria uma peça de teatro com esses contos. Em suma, achei uma delícia o livro, do princípio ao fim. Cito os contos que mais gostei: “Arranjo em preto e branco” (a dondoca racista achando que não é racista), “Um telefonema” (tudo o que nos vem à cabeça ao esperar a ligação de uma pessoa por quem estamos interessados), “E aqui estamos!” (recém-casados vivenciando desde a viagem de núpcias as crises de relacionamento), “Diário de uma dondoca em Nova York” (o título diz tudo, um humor impagável e delicioso), “Nova York para Detroit” (talvez o mais tocante, a desesperada tentativa de uma mulher em falar com o seu marido por telefone, o seu desespero em se fazer entender, em meio aos problemas técnicos e as outras preocupações do homem) e “Em função das visitas” (no qual a mesma incomunicabilidade e a mesma impossibilidade da mulher em ter o seu desejo de compreensão e amor suprido é verificado numa relação entre mãe e filho). Mas os contos todos foram muito fáceis de ler, muito envolventes, nem mesmo as descrições chegam a cansar. Um tesouro e tanto.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 15/08/2019
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