O PAÍS DE OUTUBRO
A clássica coletânea de contos, de Ray Bradbury, pode ser entendida como uma revisão, de 1955, de uma publicação anterior, o igualmente icônico DARK CARNIVAL, de 1947. O PAÍS DE OUTUBRO traz quinze histórias pinçadas dentre as vinte e sete da publicação mais antiga, acrescidas de quatro outras, previamente publicadas noutra parte.
A edição na qual me baseio é um exemplar da velha EDITORA FRANCISCO ALVES, coleção MESTRES DO HORROR E DA FANTASIA.
O estilo poético do autor tem, nessa pequena obra-prima da fantasia, um exemplo emblemático, equilibrado com toques generosos do macabro, aqui e ali, conferindo ao todo uma personalidade inconfundível, única.
Particularmente eficaz é o modo pelo qual Bradbury causa desconforto no leitor, seja trazendo à tona aspectos desprezíveis de seu (do leitor) insuspeito exterior de civilidade ao instigá-lo a uma observação mais atenta da deformidade, do monstruoso, logrando atiçar a anomalia adormecida nos níveis mais obscuros do subconsciente, através do conto O ANÃO, seja por insinuar a ameaça latente onde ela usualmente seria menos provável, como no conto PEQUENO ASSASSINO, um clássico definitivo.
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Em O ANÃO, Bradbury tem como tema a obsessão peculiar de um anão com uma atração de um parque de diversões, e a deformidade não visível, de alma, digamos, de pessoas que acham aquilo tudo muito engraçado...A história não é uma comédia, no entanto, e o imprevisível sela o destino dos personagens de um modo terrível.
O PRÓXIMO DA FILA é um dos dois ápices do macabro, nessa coletânea, no qual a morte é tematizada pelo viés dos aspectos decadentes ou indignos associados ao corpo sem vida. A morbidez crescente dá o tom desse conto, que tem como protagonistas um casal em viagem ao México, entre os aldeões de uma cidadezinha de costumes funerários curiosos... Traz um desfecho algo esperado mas nem por isso menos perturbador.
A FICHA DE PÔQUER SEMPRE ATENTA DE H. MATISSE é um tanto ou quanto bizarra, não é das minhas preferidas, mas com o mesmo grau de desenvolvimento de personagens e situações características de Bradbury. A prosa é eficiente e nesse sentido não chega a ser exatamente uma decepção. Isso, é claro, são impressões muito pessoais, é provável que outros leitores venham a se deliciar com o conto. Atenção aos detalhes...
O ESQUELETO é muito mais interessante que a anterior. Aqui, um hipocondríaco além de qualquer esperança padece diante da desagradável constatação da presença de um "inimigo" muito íntimo, íntimo demais, na verdade. O toque ambíguo necessário a toda narrativa que lance mão da paranóia, como recurso, é sutilmente ameaçado aqui e ali, apenas para insinuar o que está por vir, de modo inevitável e irreversível. É uma história no estilo dos quadrinhos EC.
A JARRA é um mergulho especulativo nos recônditos mais primitivos da mente, desprovida de defesas da racionalidade vesga da contemporaneidade, num ambiente onde o maravilhoso é uma possibilidade de resposta, não um obstáculo. A fragilidade da condição humana é exposta e explorada pelo viés da crença pura e simples, daqueles pressupostos tácitos que assumimos como verdadeiros por uma mera questão de conforto...ou desespero. A construção dos personagens é primorosa, não há o menor vestígio de virtude que supere a fraqueza moral em cada um, ao menos o vazio existencial desolador tão ajustado aos menos piores. O melhor de tudo é que, se isso parece meio forçado ou deprimente, podemos simplesmente apreciar uma história de crime sem maiores pretensões.
O LAGO é um conto tocante sobre perdas irreparáveis e como -- e o quão profundamente -- elas mudam quem somos. É de uma beleza intensa, é dessas narrativas que logram transportar o leitor para o seu próprio passado mágico e sagrado, e algo triste, também. A arte do conto nunca esteve tão bem representada quanto nesses momentos lírico-bradburianos da ficção imaginativa em língua inglesa.
O EMISSÁRIO traz a passagem dos dias e o avanço das estações sob a ótica de um menino doente, confinado ao seu leito, "informado" por seu cão, e toda sorte de resíduos, odores e impressões decorrentes de suas explorações -- ele cava e explora onde lhe ocorra ao instinto fazê-lo . Um dia, no entanto, ele explora e cava num sítio peculiar...e não volta sozinho. Um dos melhores finais que já li.
Em POSSUÍDA PELO FOGO a especulação imaginativa de Bradbury se volta para a leitura comportamental, e sua suposta relação com a temperatura ambiente! Inusitado, e com razoável dose de plausibilidade necessária a tal tipo de enredo. Vale pelo suspense crescente e certo tom cômico dos dois bem intencionados personagens principais.
O PEQUENO ASSASSINO talvez seja o mais emblemático dos contos de horror bradburyanos, sua história mais terrível, na minha opinião. Paranóia e demais perturbações de espírito permeiam o enredo, no qual uma jovem mãe está plenamente convencida de que o seu bebê quer matá-la! Não dá pra acrescentar mais nada sem comprometer o prazer da leitura. Obra-prima.
A MULTIDÃO é um conto perturbador, dada a premissa improvável e, por isso mesmo, bizarra. Funciona à perfeição a partir do momento em que o leitor considere a tese proposta na narrativa. Uma vez acionada a "suspensão voluntária da desconfiança" , o horror tem livre curso, numa perspectiva desalentadora e brutal...mas quem chegou até aqui não está exatamente esperando finais felizes, suponho...
A CAIXINHA DE SURPRESA é um dos contos mais francamente alegóricos do autor. Tudo é colocado na perspectiva de um menino, que começa a desconfiar de que o que lhe apresentaram como "o mundo" talvez não passe de uma farsa, bela por algum tempo, mas inconsistente diante dos maiores imperativos da existência humana. Terrível, de certo modo, e no entanto surpreendentemente otimista.
Em A SEGADEIRA um pai de família sem muitos recursos vê sua sorte mudar quando, aparentemente por acaso, o carro da família quebra justamente nas imediações de uma propriedade rural. O dono da propriedade acaba de morrer e deixa tudo o que tinha para o primeiro que lhe encontre o corpo inerte. O novo dono só precisa cuidar da propriedade e do trigo -- há uma plantação de trigo, que apresenta um comportamento bizarro de crescimento, entre outras esquisitices. Há a segadeira do título e um segredo terrível que lhe custará muito, muito caro. Outro conto alegórico -- ou de horror inexplicável, fique à vontade, leitor, para abordar a narrativa da forma que lhe pareça mais conveniente -- tocando em questões como a pertinência de existir, destino, livre-arbítrio, entre outros temas. Angustiante, pungente e tenebrosamente sincero.
TIO EINAR é tranquila, algo cômica e poética, com sua improvável história de amor entre uma camponesa simpática e um...homem alado! O maravilhoso levado a efeito com maestria pela prosa efetiva de Bradbury. Notar uma das duas ou três referências à Segunda Guerra Mundial.
O VENTO traz outra narrativa com boas doses de paranóia, na qual um sobrevivente de situações extremas de exposição à fúria dos elementos enlouquece diante da vingança personificada de ventos ancestrais, furiosos e assassinos. Seu paciente amigo acompanha, algo inútil e impotente, por breves contatos telefônicos, o agravamento do estado de espírito do paranóico, até o momento final, surpreendente, embora meio aberto a diversas leituras. Um dos momentos altos da coletânea, o suspense é conduzido em tensão crescente até o desfecho arrebatador.
O HOMEM DO SEGUNDO ANDAR é a história da chegada de um novo hóspede a uma pensão, homem estranho, de hábitos curiosos. Nada escapará à curiosidade do protagonista, um menino, neto dos donos da pensão. O que ele descobre é, naturalmente -- ou talvez fosse, aqui, mais apropriado dizer anti-naturalmente...-- um desses segredos ominosos comprometedores, do tipo que exigem uma atitude decisiva. Pode não ser o melhor conto, mas gosto do tom, da ambientação, da tessitura dos personagens. Prosa eficiente numa história que mantém o leitor atento.
HAVIA UMA VELHA SENHORA é dessas histórias não muito indicadas para quem não tem ao menos um pouquinho de atração pelo macabro, pelo mórbido. Pode soar até vulgar, para os mais sensíveis, apesar dos atenuantes cômicos. Essa história, O PRÓXIMO DA FILA e A CISTERNA levam à categoria de arte refinada o que em mãos ineptas seria a gratuita especulação a respeito dos aspectos mais degradantes da morte, do destino indigno e por vezes desonroso dessa casca vazia que já foi alguém. É mais divertida que poeticamente bela, e isso já é motivo suficiente para uma leitura despretensiosa, e se possível sem preconceitos.
A CISTERNA confere aquele toque de lirismo arrebatado, onírico mesmo, às considerações de uma mente algo excitada sobre a morte, e sobre o corpo após a morte. Ambientação impecável.
FESTA DE FAMÍLIA é uma apoteose da imaginação fantasiosa do autor, com os dramas de inadequação de um menino, numa ocasião muito especial para a sua família peculiar, muito peculiar. Lembram do Tio Einar? Ele dá as caras por aqui, explicitando melhor o sentido de "homem alado" usado anteriormente, no intuito de não revelar demais a respeito da trama.
A MORTE MARAVILHOSA DE DUDLEY STONE fecha a coletânea com uma deliciosa incursão no mundo dos escritores profissionais, para além do glamour e das trivialidades pelas quais tudo parece ser tão mágico e perfeito, à primeira vista. Outra daquelas histórias eficientes propondo a incontornável questão "O que realmente importa, para você? ". Excelente escolha para finalizar o livro.
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As mulheres da narrativa bradburyana cumprem bem a finalidade básica pela qual existem, qual seja, ser o objeto de um inventário de conquistas de seu macho ou mero acessório no esquema geral de coisas estabelecidas, necessárias mas não particularmente especiais de alguma forma. Aimé, Marie, a senhora Garvey, Clarisse e as demais funcionam, como elementos do enredo, como devem funcionar e é exatamente assim que deve ser. Não há muita profundidade psicológica nessas damas, elas frequentemente remetem às gostosas traiçoeiras das publicações EC, de quadrinhos de horror dos anos 50, tão expressivas quanto figuras recortadas em papelão. Embora não sejam ignorantes, no sentido usual de desvantagem intelectual ou cognitiva, ou de acervo deficiente, não são, por outro lado, burras, do modo como a ingenuidade cheia de boas intenções frequentemente pode ser, de fato, mas são irremediavelmente estúpidas de uma maneira irritante, apenas, frívolas quando felizes, patéticas se tristes. Em tempos em que autores como Robert Heinlein é considerado misógino e até H.P. Lovecraft e Monteiro Lobato são vistos como racistas, é interessante especular a respeito da receptividade de Bradbury entre a turma dos ressentidos, a multidão dos coitadinhos...
Enfim, O PAÍS DE OUTUBRO é boa introdução à obra do autor, que reverbera entre os que sofreram sua influência, como Stephen King e Clive Barker --- embora Barker faça ressalvas ao toque mais suave, poético, de Bradbury...o autor de LIVROS DE SANGUE definitivamente não é dado a sutilezas... -- ainda que sua fama póstuma inevitavelmente cresça bem mais em função da distopia FAHRENHEIT 451 e CRÔNICAS MARCIANAS que aos demais livros de fantasia e horror.
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