A prosa geograficamente humana no horizonte da poesia
Wanda Cunha
Li “Os mapas sinalizam ilhas submersas”, de Franck Santos. Poesia de cara nova, contemporânea, que viaja a outros continentes levando o oceano na bagagem. Estava ali a minha iniciação de afetos pela obra literária de um autor-ilhas, bem ali, onde a paisagem era a própria existência do ser, decodificando experiências e anseios; colidindo as rupturas das relações contra as erupções dos devaneios. Dividida em Terra e Água, a obra é uma viagem a textos literários que sinalizam poesias mimetizadas em narrativas curtas, que lembram crônicas e pequenos contos, e que atendem pelo nome de prosa poética, mas que são, na verdade, vozes do eu/narrador-poético, que não impõem gêneros ao que está escrito e a quem o escreveu, porque é a existência de um ser continental e oceânico que se separa e se recria na concepção de um fazer-literário.
Na primeira parte do livro (Terra), Vórtice (p. 19) me faz vislumbrar o desejo moribundo do eu-lírico de inundar-se do outro, sob pontos de silêncio e solidão, na tentativa desgovernada de um encontro de paz em vez dos abismos costumeiros que levam à predação da relação a dois. Ademais, as TARDES (p. 21) são recorrentes: “Quero chegar também ao mar... (...) ... são essas tardes que espero cartas... Eu queria ser dessas pessoas que não se incomoda com adeus.” A relação entre o eu-lírico e o ser amado é de desencontros. A distância entre o amado e o amante se estabelece por meio de esperas de cartas, telefonemas e e-mails e o adeus que incomoda. Apesar das despedidas e solidão, a tarde é o ponto de encontro de andorinhas (Ainda resta o colorido de um jardim), pássaros que voam (Na tarde pós-tempestade); amantes existencialistas e seus infernos (Nós dois); e do azul (Colisão).
A segunda parte do livro, Água, inicia um processo de desterritorialização simbólica oriunda das demandas afetivas do eu e do outro. O narrador-poético necessita de novos espaços, quando seu território intrínseco sofre alterações, as quais o levam à (re) construção de viagens, a exemplo de Do Oriente que há em nós (p. 65), Por onde o vento soprou (p. 67/68), Sobre laços e nós (p. 84). Em “Naquela Tarde” (p. 63/64), há recortes de leituras, existências e lugares, que sugerem a imagem da solidão extraída do passado: “....um atlas, Patti Smith e Sylvia Plath, restou uma sensação de quase escuro, mas continuo anotando frases nas agendas e como um argonauta ainda fabrico minhas conchas.” Bachelard, em A Poética do Espaço (p. 277/278), confirma este estado d’alma: “...é preciso estar só para habitar uma concha. Vivendo a imagem, sabemos que admitimos a solidão”.
A obra de Franck Santos é colorida de um azul que encharca a poesia, o mar que nela habita, a própria tarde, os pássaros... O azul, com seu semblante frio, imaterial, associado ao mundo dos sonhos, é a cor protagonista, no onirismo que mistura corpos dos amantes com terra e água, enquanto as outras cores, como o vermelho de batons, assumem papéis secundários. Nesse exercício de azul, o discurso poético decifra uma paisagem que, simultaneamente, é literária e geográfica, mas que só se realiza na atitude existencial dos amantes. Os mapas vão servindo de instrumentos de orientação e localização no âmbito geográfico, enquanto no contexto literário, os mapas de Franck Santos são a poesia com a qual ele traduz a busca de todo um universo paisagístico interior.
Esse fenômeno de interiorização transita entre o eu-que-sonha e o eu-que-existe para chegar à Ilha submersa (p. 85) “Na noite, um grito, que não coube em mim. / âncora, suas mãos/ Asas, sua voz, me acalmam..” O poeta consulta seus segredos ao mergulhar no horizonte híbrido do amor que se desvela em seu Tarô: “Que importa a paisagem geográfica se a paisagem humana estiver ao nosso lado?” Poesia e prosa se fundem em busca de um horizonte geograficamente humano. Os Voos é uma peça literária à parte, de valor encantador. Os escombros é uma descrição do abandono, da solidão daquele que ficou no sentimento desértico de quem partiu. Café da tarde é mais um encontro dos muitos desencontros. A relação de amor se mistura na Água com Açúcar e Água e sal. Açúcar e Sal são elementos dicotômicos de um convívio, diluídos que eles o foram pelas ausências, separação e distância.
Os mapas de Franck Santos também sinalizam um roteiro de viagem à teoria quântica, por meio da qual as esperas ecoam num Universo Paralelo. É todo o tempo o amor sendo consumido e redimido pela distância, em busca do encontro definitivo: “estarei nessa cidade líquida de casarões em ruínas, águas, conchas, sal e sol. Estarei aqui, no meu universo não paralelo, esperando você”. A expressão “cidade líquida” sintetiza a metáfora da água: se a cidade é líquida é porque ela assume as várias formas das esperas: espera de ruínas, de sal, sol, conchas e de águas. Ou, ainda, a “cidade líquida” assume a ideia de fragmento, dispersão, tudo determinado pela incerteza permanente, sobre a qual se debruçou a teoria da modernidade líquida, de Zygmunt Bauman. Tudo é a síntese do querer embalsamado na Sessão da Tarde, na qual o encontro é a interiorização recíproca de um no outro.
Deleuze e Guattari disseram que “o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não é somente em sua obra que ele os cria, ele os dá para nós e nos faz transformar-nos com ele”. Foi isso que ocorreu depois que li esses mapas que ainda sinalizam, em mim, ilhas submersas. A vontade é de continuar nessa produção de sentidos, porque a fila dos outros leitores não depende da minha para que eles cheguem às ilhas. Posso ficar o tempo que quiser e encher de novas poesias as poesias sinalizadas nos mapas. Todos podem. Afinal, todos têm suas ilhas, suas terras e mares; e, ainda que não estejam mapeados, traduzem-se nesses perceptos trazidos à baila pela poeta Franck Santos. Todos os leitores, certamente, afetados, mexidos, tocados. Todos prontos para se transformarem na máquina de produção de afetos... Os mapas sinalizam...