Diário das minhas leituras/35
27/07/2019 – ANTOLOGIA DO MODERNO CONTO ALEMÃO 2
Na sequência, li “Quando a guerra terminou”, de Heinrich Böll, que diz respeito a um prisioneiro durante a fase final da guerra. O que me chamou a atenção ali foi o comércio havido entre os prisioneiros, no qual o sabonete era uma as moedas de maior valor. Depois veio “Pagamento atrasado”, de Siegfried Lenz, uma interessante história que permite vislumbrar a difícil questão da reparação material decorrente de atividades exercidas durante a guerra. Mais para frente eu li “Meu irmão louco”, de Stefan Heym, em que a discussão é a separação do mundo em dois grandes blocos ideológicos após o término da guerra. Mas há nesse livro também outros contos que não dizem respeito diretamente à guerra, e, coincidentemente, estes me pareceram bons o bastante para estarem entre os meus favoritos. Um conto que para mim é exemplar, e que se destaca inclusive pela agilidade da linguagem (que sempre valorizo), é “Um velho morre”, de Luise Rinser. Versa sobre os últimos momentos de um velho, casado há muito tempo com uma mulher mais jovem que ele, a quem sempre tratou como menina e por quem sempre fez tudo, a tal ponto que ela sequer tinha condições de viver por si só. Acompanhamos a perturbação da mulher com a morte iminente, às vezes parecendo desejá-la, mas, depois, culpando o morto pelo abandono em que a deixa. A mulher tem várias crises quando a morte se consuma, mas, depois, tem o desejo de enfrentar o morto com atitudes do tipo colocar forro de papel de parede na cor azul, cor de que o morto não gostava. Porém, o tempo passa e ela vai definhando. Começa a beber, porque o morto sempre quis que também ela bebesse, e acredita que ao fazer isso talvez houvesse paz. É um personagem contraditório, e com a complexidade que a realidade tão bem oferece. Um belo conto psicológico. Parece que essa Luisa Rinser gostava de falar de pessoas “perturbadas”, sobretudo mulheres, e, ao julgar por esse conto, sabia fazer isso muito bem. Outro conto sem relação com a guerra, mas maravilhoso, é “Pois o homem busca o calor”, de Josef Martin Bauer. Na introdução do livro, esse conto é chamado simplesmente de “sátira”, mas isso me parece muito pouco. Eu diria que se aproxima de uma alegoria kafkiana. Trata de um sujeito que começa a frequentar certo ministério a fim de conseguir um pouco de calor durante o inverno. E de tal forma se faz presente naquele lugar que começa a entender toda a estrutura do prédio e reconhecer as funções de cada pessoa com que topava. Um dia é confundido com um funcionário e lhe pedem que façam uma coleta por todo o ministério para outro funcionário que havia morrido. Ele anda por todo o prédio, entrando em todas as salas, se sai muito bem e depois disso resolve criar novas coletas, agora em benefício de si próprio. Inventa vários personagens e vários enredos, dramas pessoais e cotidianos, e com eles consegue de fato muitos donativos, pois, como agora bem observado na introdução do livro, as pessoas querem ajudar, desde que não precisem se envolver diretamente com os dramas dos outros. Ele se sustentava com o dinheiro da solidariedade dos outros, e procurar não pensar muito naquilo que fazia. Até que esse sujeito tem um ataque no próprio ministério. As pessoas se dão conta de que não sabem quem ele é, nem o seu nome e nem o seu posto. Era apenas o homem que percorria o prédio fazendo a coleta para os necessitados. Pois o homem morreu do ataque e então correu uma lista de doações que tinha ele como destinatário, arrecadando-se uma quantia das mais elevadas, o que lhe deu direito a um enterro solene. “Pelas coroas podia-se constatar que não fora em vão que ele havia ajudado a trançar as coroas fúnebres de outras pessoas. E após o enterro sobrou uma porção de dinheiro, para o qual já não havia uma aplicação conveniente em proveito do morto, uma porção de compaixão e uma porção de problemas humanos não solucionados”. Claro que o “calor” do título e que deu início à trama ganha aqui outro significado, o humano. Brilhante! Depois, li ainda “A peregrinação”, de Hans Bender, história que trata disso mesmo que o nome sugere, uma família que peregrina de carro, mas só a mulher é pia, o pai está longe da “graça” e comete os seus “deslizes eróticos”, e o pequeno tudo vê. Também sem relação com guerra, a não ser o fato de, por extensão, fazer parte da literatura alemã do pós-guerra.
29/07/2019 – STENDHAL
Do excepcional “O vermelho e o negro”:
"A política é uma pedra amarrada no pescoço da literatura e que, em menos de seis meses, a faz submergir. A política, entre os interesses da imaginação, é um tiro de pistola no meio de um concerto. Esse ruído é dissonante sem ser enérgico. Não se harmoniza com o som de nenhum instrumento. Essa política vai ofender mortalmente metade dos leitores e aborrecer a outra metade, que a achou bem mais interessante e vibrante no jornal da manhã".
31/07/2019 - ANTOLOGIA DO MODERNO CONTO ALEMÃO 3
Segui a leitura com “Imolação de um carneiro”, de Alfred Andersch, sobre um homem às portas da histeria em meio às circunstâncias da vida moderna. “Setas vermelhas”, de Heinz Piontek, foi o seguinte, mas esse não chegou a me agradar como história de aventura e nem como triângulo amoroso. Já “O dilema”, de Wolfdietrich Schnurre, tem como temática a divisão de Berlim em duas após a guerra, com os personagens, cansados da vida que levavam, tentando passar para o outro lado, o que não significa que não se decepcionassem e não quisessem voltar. “A história toda”, de Herbert Eisenreich, conta com a interessante história de vida que um sujeito conta na mesa de um bar e que diz respeito a um trauma causado pelo fato de, na infância, ter visto o pai bater na sua mãe. Bonito para valer mesmo é o conto “O jovem do mar”, de Hans Erich Nossack, conto simbólico em que a personagem, uma mulher, de certo modo “cria” a figura de um jovem que representa as suas idealizações de pureza, inocência e instinto materno, sobretudo num mundo em que as pessoas caras a ela haviam perecido na guerra. “Schinz”, de Max Frisch, é absolutamente kafkiano, flertando com a loucura, mais insinuando do que afirmando, em uma linguagem que, mesmo na tradução, demonstrou vigor. Há alguma coisa de projeção no encontro que o personagem tem com o espírito”. “A ordem violada”, de Ilse Aichinger, é a única história que se passa durante uma guerra, que não necessariamente é a segunda. “A festa no estúdio”, de Wolfgang Hildesheimer, começa de forma despretensiosa e depois se transforma em uma curiosa história surrealista. Outro conto a tratar de um tipo de projeção é “A criança gorda”, de Marie Luise Kaschnitz, em que a personagem retorna à infância a partir de uma estranha criança que lhe aparece. Por fim, o livro apresenta “Ondina parte”, de Ingeborg Bachmann, conto que é mais um arrebatamento poético e lírico, de difícil compreensão.
31/07/2019 - ANTOLOGIA DO MODERNO CONTO ALEMÃO (RESUMO)
Uma boa antologia pegando o que de melhor se escrevia na prosa curta alemã nos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Principalmente nos primeiros contos, a relação com o tema da guerra é bem visível. São ainda repercussões e aprofundamentos não tanto do combate em si, mas do que trouxe aos alemães. Depois, conforme o livro avança, aumenta o número de contos que não têm uma relação tão marcada com a guerra, mas ela continua se fazendo presente, ainda que de forma sutil. Chamo a atenção para a existência de alguns contos em que há uma espécie de “projeção” dos personagens, com destaque para “O jovem do mar”, de Hans Erich Nossack, conto simbólico em que uma mulher consegue realmente “criar” um homem que representa, de certa forma, o seu porto seguro em tempos de conflitos dos seres humanos. É a versão idealizada dos seus melhores sentimentos que vem à tona, depois de ser sufocada pelos anos de conflito. Também há projeção em “A criança gorda”, de Marie Luise Kaschnitz, essa fazendo com que a personagem retorne à sua infância. Há também os contos que já tratam da divisão em duas de Berlim, com todas as implicações existenciais dessa separação. Nota-se também a presença do absurdo kafkiano, seja em “Schinz”, de Max Frisch, ou no fantástico “Pois o homem busca o calor”, de Josef Martin Bauer, que nada tem a ver diretamente com a guerra, mas que, no entanto, faz uma alegoria forte sobre as relações humanas, e são essas, afinal, as que conduzem ao conflito bélico. Temas como os refugiados escondidos, a reparação financeira após os abusos do tempo da guerra e a volta para casa depois do fim dos combates também aparecem. “Reservado”, de Paul Hühnerfeld, é outra peça a se destacar, pois, embora a guerra não seja o tema, trata da “culpa não expiada” e não parece forçado associar a construção do autor ao próprio sentimento do alemão comum em relação ao que havia acontecido. Entre os que não têm relação conhecida com a guerra, destaco o conto “Um velho morre”, de Luise Rinser, exemplar perfeito de construção de um drama psicológico.
31/07/2019 – GRACILIANO RAMOS
De uma das suas crônicas de viagem à URSS, publicadas no ótimo “Viagem”:
“Achamos vantagem nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelharmos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamo-nos fortes. Realmente, somos bestas”.
02/08/2019 – GÉRARD DE NERVAL
No conto “A mão abandonada”, descobri como consolar um condenado à morte:
“A morte não respeita ninguém. Ela é tão atrevida que condena, mata e colhe, indiferente, papas, imperadores, reis, como prebostes, sargentos e outros tais canalhas. Portanto, não se aflija de fazer o que todos os outros hão de fazer mais tarde; a condição deles é mais deplorável que a sua; pois, se a morte é um mal, não é mal senão para aqueles que têm de morrer. Assim, você não tem mais que um dia desse mal, e a maior parte dos outros têm dele vinte ou trinta anos e mais. Um antigo dizia: “A hora que vos deu a vida já a diminuiu”. Você está na morte enquanto está na vida; pois, quando já não está em vida, está depois da morte; ou, para melhor dizer e bem terminar: a morte não lhe diz respeito nem morto nem vivo: vivo, porque você existe; morto, porque já não existe!” Bastem-lhe, meu amigo, esses argumentos, para animá-lo a beber sem careta essa absinto, e medite ainda, daqui até lá, um belo verso de Lucrécio, cujo sentido é este: “Vivei tanto quanto puderdes: nada tirareis à eternidade da vossa morte”.
02/08/2019 – ANTOLOGIA PAN-AMERICANA
Já li a parte “espanhola” dessa antologia de contos contemporâneos (anos 90 e 00). A julgar pelo que li, acredito que eu vá preferir largamente os contos clássicos em relação aos contemporâneos, pois foram muitos os que estranhei e bem poucos os que gostei. O que mais me agradou foi “Onde está você, Ana Klein?”, da venezuelana Ana Teresa Torres, que achei muito bem escrito e com tema interessante (uma psicanalista e seus pacients), embora não tenha gostado da parte do final do conto, quando se muda a voz narrativa e se cria uma significação diferente. Também achei bom “O dezenove”, do Mario Benedetti, que é um autor que eu já conheço e sei que é bom mesmo, embora o seu conto não tenha chegado a me entusiasmar exatamente. “Lontananza”, do mexicano David Toscana, também me agradou. De resto, há contos de diferentes estilos. Alguns não caíram nem pouco no meu gosto, caso de “Sozinho no universo inteiro”, de Horacio Castellanos Moya (El Salvador), que faz um conto erótico sofisticado, mas, ainda, conto erótico. Há um conto tendendo ao terror com Sergio Ramírez (Nicarágua) em “A estratégia da aranha”, uma reconstrução histórica em “O grande segredo de Cristóvão Colombo”, de Luis López Nieves (Porto Rico), textos que até achei interessantes, mas sem exagero. “A cópia”, de Eduardo Berti, foi um que me chamou a atenção pela pouca originalidade do desfecho, quando se descobre uma troca entre o quadro original e uma cópia. “R. M. Waagen, fabricante de verdades”, de Abdón Ubidia (Equador) foi outro conto que achei legal, e que conta também com aquele realismo mágico que tanto caracteriza a literatura do continente. “O efeito dominó”, de José Acosta (República Dominicana), é de uma violência espantosa, o que me parece ser também característica do continente, a julgar pelo que li em “Maravilha do Conto Hispano-Americano”, que também conta com exemplares desse estilo.