"Uma anedota infame" de Dostoiévski: a elite que busca falsamente defender o povo, com resultados constrangedores
Livro "Uma anedota infame" do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Trata-se de uma novela escrita em meados de 1862, período em que ocorria a chamada Reforma Emancipadora no então Império Russo, iniciada no ano anterior, pelo Imperador Alexandre II. Foi uma das várias reformas feitas pelo monarca. A principal ação tomada foi a decretação do fim da servidão (escravidão) dos camponeses. O número de libertados foi em torno de 22,5 milhões de servos camponeses. O irônico disso é que a propriedade dos latifúndios foi mantida, preservando a riqueza construída com escravidão nas mãos da elite da época.
Essa questão da Reforma Emancipadora influenciou diretamente na formulação do texto. Na Obra, Dostoiévski conta a história de Ivan Ilítch Pralínski, um general e funcionário público, tido como liberal pelos colegas, que ostenta com orgulho uma condecoração no pescoço, e que sonha em se tornar um grande estadista. Durante uma noite de confraternização com dois amigos, regrada com muito álcool, discutindo sobre política, apresenta a eles sua filosofia baseada na "bondade" para com pessoas de status mais baixos que o seu. A ideia não empolga os amigos, o que lhe ofende. Ao ir embora, percebe que seu mordomo não está lhe esperando com a carruagem (tinha ido a uma festa). Resolve, então, seguir sozinho pelas ruas, bêbado. No caminho, depara-se com uma festa de casamento de um de seus subordinados e, como forma de comprovar sua filosofia, resolve entrar na confraternização, sem ser convidado, e "honrar as pessoas com sua presença". Entretanto, uma espiral de constrangimentos tem início...
O constrangimento não se dá apenas no ato de invadir uma confraternização sem ser convidado. O verdadeiro constrangimento está no fato de Pralínski, mesmo querendo interagir com as pessoas, em nome de sua filosofia, despreza completamente todas elas, considerando-as incultas, grosseiras, bem abaixo de seu status como militar e como integrante do governo.
Em essência, era esse o clima no Império Russo. A Reforma, de cunho liberal, trazia o espírito da mudança, com o fim da escravidão, beneficiando as camadas mais pobres. Contudo, ao não eliminar o latifúndio, as elites mantiveram seu poder. Na prática, os camponeses russos continuaram pobres, numa liberdade ilusória.
O texto da obra apresenta uma boa dose de ironia, de sarcasmo. Há um clima de falsa leveza, inspirada pelas cenas constrangedoras pelas quais Pralínski passa, mas o fundamento é cruel. Afinal, seja no Império Russo ou em qualquer outro local do planeta, ao longo da História, ao mesmo tempo em que os governantes fingem ajudar o povo, eles o esmagam. Não há conciliação visível. E, provavelmente, não deve haver. Leitura recomendada!
P.S.: Resenha escrita em julho de 2019.