"O oceano no fim do caminho" de Neil Gaiman: fábula tem abordagem e personagens interessantes, numa leitura instigante, mas peca no simbolismo e na metáfora
Nota introdutória: resenha com pequenos spoilers.
Livro do escritor britânico Neil Gaiman. Trata-se do meu segundo contato com a Literatura dele. Em meados de 2016, li "Coraline", outra fábula e que se mostrou uma leitura cativante. Muitos dos elementos que funcionaram naquela obra, também funcionam aqui.
Gaiman se especializou, nos últimos anos, em narrar fábulas para adultos. Embora muitos de seus personagens sejam crianças, isso não impede que o público, movido por nostalgia, busque na leitura de seus livros um pouco da inocência da infância, época em que a vida possui mais magia e mistérios. Em "O oceano no fim do caminho", temos o adulto relembrando passagens de sua infância. Na história, um homem sente o impulso de retornar à fazenda que ficava perto de sua casa, quando era criança, e onde vivia uma amiga de quem perdeu completamente o contato. Nos fundos da propriedade, ficava um lago (que sua amiga chamava de 'oceano') e, ao sentar em sua margem, foi invadido por lembranças terríveis.
A narrativa de Gaiman é direta, numa linguagem simples e que, em momentos isolados, consegue ser um pouco poética. Ele trabalha o mistério com maestria. A leitura flui num ritmo rápido e instigante. Seus personagens são interessantes, tornando a experiência literária gratificante. O final do livro é satisfatório. Contudo, nem tudo é perfeito.
O problema da obra reside na busca por uma profundidade que, não fica claro, se houve ou não interesse de Gaiman em buscar. A natureza de muito do que ocorre não é explicado. Personagens e situações surreais, cuja história não é explicada são elemento comum na narrativa. Certos acontecimentos podem ser lidos como literais ou há uma metáfora embutida aí sobre traumas infantis? Impossível dizer. Tudo fica nas entrelinhas, mas com uma sensação incômoda de algo poderia ser melhor finalizado.
Um bom exemplo dessa falta de finalização na simbologia são as personagens femininas. Há três personagens femininas importantes na obra: as integrantes da família Hempstock. Elas são representações do Sagrado Feminino (a virgindade, a maternidade e a maturidade), mas muito pouco dessa visão mitológica é explicada. As personagens são capazes de fazer certas coisas incríveis e, sobre isso, nada é dito. Sobre mitos, inclusive, o próprio Gaiman diz, no início do livro: "Eu gostava de mitos. Eles não eram histórias de adultos, e eles não eram história de crianças. Eles eram melhor do que isso, apenas eram". Portanto, é apenas um livro de mitologia, narrado por uma criança que gostava de ler? Ou uma metáfora para dizer que, por ser criança, certas coisas não podiam ser compreendidas, tais como os mitos? Gaiman não responde. Há ainda um quarta personagem feminina relevante: a antagonista "Pulga". Essa, parte de uma premissa interessante, a de uma criatura com um poder terrível, o de de conceder tudo aquilo que as pessoas desejam. Entretanto, pouco de sua natureza e motivações é explorado. Por fim, há o personagem do Garoto, cujo nome não é dito, o que permite a rápida empatia do leitor, reforçada por certas características pessoais do mesmo. Trata-se da personagem melhor trabalhada, mas os acontecimentos que o cercam, como dito anteriormente, podem ser lidos tanto como literais quanto como um olhar para o lado sombrio da infância, permeado de traumas. Essa indefinição me incomoda.
O livro de Gaiman, apesar disso, possui enredo e personagens interessantes, o que torna a experiência literária muito satisfatória. Um elemento positivo a se destacar é a atmosfera em si: a ambientação é sensorial, podendo-se sentir o cheiro do que se come ou contemplar o verde da paisagem e o caminho que leva ao belo 'oceano' (mais uma metáfora?) perdido nas recordações do narrador.
Gaiman, embora simples numa primeira impressão, sempre instiga o leitor a um olhar mais atento. E quando isso é recheado de boas ideias (ainda que não se fechem, por vezes), que se desenvolvem numa narrativa interessante, a leitura se torna rica. É o que se espera de um bom livro... e é o que ele entrega.
P.S.: Resenha escrita em julho de 2019.