Diário das minhas leituras/33

03/07/2019 – O CONTO ÍDICHE (PARTE 7)

“O Rei Ahab”, de Schmuel Isban, é o único conto de temática histórica dessa antologia. Os demais são de mote mais contemporâneo. Rosa Palatnik é a única escritora mulher do livro e, também a única que se estabeleceu no Brasil. “Glóbulos”, conto dela, é também um daqueles contos em que duas pessoas, na velhice ou no fim da vida, voltam a se encontrar para o ajuste de suas histórias (acho que sempre vou associar esse tipo de história a Sándor Márai). Depois, vem um grande conto do Grade. Haim Grade é o nome da fera, escritor lituano que escreveu “Minha querela com Hersch Rasseiner”. Trata-se de conto filosófico e de ideias, ou seja, há pouquíssima ação. O que há é um debate dos mais interessantes entre o autor, ou seu alter ego, e um antigo amigo seu de estudos judaicos. O conto expõe o conflito entre o judeu “fanático” e o judeu “secularizado” em uma Europa recém-saída do Nazismo. São discussões das mais elevadas sobre a identidade e o comportamento do judeu na vida em sociedade. Representando o judeu secularizado, o balanço final do conto acaba favorecendo uma visão menos intolerante contra os “judeus não praticantes” e contra outras religiões, mas posso garantir que o outro, o “fanático”, apresenta argumentos bastante válidos e, por vezes, deixa o nosso escritor em apuros na argumentação. O conto é um exercício muito interessante, pelo menos para mim, que gosto desses debates de ideias, e que tem o seu valor aumentado por ser uma discussão ocorrida imediatamente após a matança dos judeus. E, por fim, o último conto do livro é “O homem silencioso da Rua dos Profetas”, de Mêndel Man, em que, mais uma vez, há um encontro para acertar as contas com o passado, agora entre um homem e seu “duplo”.

03/07/2019 – O CONTO ÍDICHE (RESUMO)

Uma experiência das mais enriquecedoras tive ao ler “O Conto Ídiche”, antologia de 1966. Aprendi muito sobre a literatura feita pelos judeus e sobre seus ritos e tradições. Essa não é uma obra que se proponha a converter alguém, e pode-se até mesmo encontrar contos que criticam certos costumes associados à religião. São, sim, contos que geralmente enfocam pessoas de uma cultura específica, mas a leitura é agradável inclusive para os que não compartilham dela. E há contos completamente universais, como é o caso da pérola “Ela era feia”, de David Pinski, uma das coisas mais belas e mais tristes que já li na vida. A obra abrange o período do Nazismo e, por isso, também expõe algumas das histórias terríveis por ele produzidas. O grande destaque é “Cristo no gueto”, de Scholem Asch, conto que evidencia as diferenças entre judeus e cristãos, mas, sobretudo, como os nazistas se beneficiavam dessas disputas. Por fim, mesmo sendo judeu, o autor usa o “sobrenatural” de Jesus para aproximar judeus e cristãos contra o inimigo comum. Boa parte dos escritores desse livro foi morta durante a guerra. São russos, poloneses e lituanos, muitos deles imigrados aos Estados Unidos. A sedução da imigração para a América, inclusive, é abordada lindamente em “A caminho do novo mundo”, de Itzhok Metzker. E há ainda outra grande joia que merece ser ressaltada: “Minha querela com Hersch Rasseiner”, de Haim Grade, um conto filosófico, praticamente sem ação, mas muito interessante, porque um judeu “fanático” e um judeu “secularizado” discutem a identidade e o comportamento do judeu na sociedade, isso logo após o término da guerra. É realmente uma disputa de argumentos e a tolerância parece sair fortalecida. Apenas uma das escritoras do livro é mulher, mas é justamente uma que imigrou ao Brasil: Rosa Palatnik. Há um livro próprio voltado ao conto ídiche no Brasil, que também quero ler. Em suma, tive muitas boas e gratas surpresas.

08/07/2019 – FREDRIC BROWN

Em meio aos contos de ficção científica que estou lendo, sem dúvida se sobressaiu “Arena”, escrito pelo norte-americano Fredric Brown, de quem nunca havia lido coisa alguma. Trata-se de uma disputa entre os humanos e os “intrusos”, uma raça alienígena inimiga, e que se dá no espaço, lá nas redondezas de Plutão. Na verdade, a história se concentra no conflito de dois seres específicos das duas raças que, em dado momento, são “pegos” por uma inteligência superior e colocados em uma dimensão paralela. Esse ser superior acompanhava a disputa das duas raças e diz que, se continuarem com o confronto, uma delas iria ser dizimada e a outra, mesmo vencedora, seria reduzida a um estágio inferior e nunca chegaria ao seu destino de alta evolução. Por isso, o ser havia escolhido um representante das duas raças para guerrearem entre si e aquele que conseguisse matar o rival garantiria que a sua civilização sobrevivesse e prosseguisse na sua caminhada em direção aos altos desígnios do Universo. Só que não se tratava de uma disputa comum. Os dois estavam naquela dimensão paralela e descobrem que estão separados um do outro por uma barreira invisível. O representante dos intrusos é pouco mais que uma esfera, sem nada que lhe assemelhe às feições humanas. Os dois precisam descobrir como vencer um ao outro tendo a barreira invisível a separá-los. No cenário, há alguns arbustos e uns curiosos lagartos, que sabem até falar. Por acaso, um desses lagartos, mutilado pela esfera, consegue atravessar de um lado ao outro da barreira. O humano acha que só as coisas mortas conseguem passam por ela, mas depois descobre que o lagarto não estava morto e que apenas as coisas inconscientes é que passavam por ela. Será por meio disso, depois de atirar uma pedra em si mesmo, que ele cai desmaiado para o outro lado e consegue, por fim, derrotar a esfera maluca. Mas até chegar lá há bastante tensão na trama, há guerras de pedra, que podiam passar também a barreira, a esfera chega a fazer uma catapulta, o humano é ferido, sente sede, enfim, e o autor consegue manter o interesse na história lá em cima. Esse conto lembrou-me de outro, que já elogiei aqui, o “Entre as paredes de Eryx”, do H. P. Lovecraft, que se passa em Vênus, onde um humano descobre um labirinto invisível. Também ali a tensão e a expectativa pela solução do problema garantem um vívido interesse no desenrolar do conto. Mas eu ainda gostei mais do conto do Lovecraft, e devo admitir que um dos motivos é por não ter final feliz. No conto do Brown, claro, o humano vence. De toda forma, achei a história dele bastante interessante, um exercício curioso e muito agradável de se ler.

08/07/2019 – AMELIA REYNOLDS LONG

Essa foi outra escritora de que li um conto de ficção científica, se bem que achei “Filogenia às avessas” um conto que está mais para “fantástico”. Fala sobre uma espécie de “terapia de regressão” que tinha o objetivo de confirmar a existência de Atlântida. É até legalzinho, se baixarmos a nossa guarda sobre o que pode ser verossímil. Mas eu tirei desse conto uma frase que nada tem a ver com ficção científica:

"É mais fácil uma pessoa livrar-se da caspa do que de um cavalheiro da imprensa".

08/07/2019 – WASHINGTON IRVING

Já esse trecho do Washington Irving eu li em outro livro, há algum tempo, e agora estou apenas fazendo com que ele conste também aqui, sobretudo pela parte que me toca:

"A natureza, quando concede a alguém um único rebento, dá a compensação, tornando-o um prodígio" (do conto "O espectro do noivo").

11/07/2019 – MARAVILHAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Por fim, terminei de ler os 29 volumes da maravilhosa coleção “Maravilhas do Conto”. O último que li foi esse voltado à ficção científica, um gênero no qual eu ainda não tinha quase nenhuma experiência. Logo de cara, o que me chamou a atenção é o risco desses contos em se tornarem datados. Trata-se, afinal, de uma coletânea dos anos 50, quando o ser humano ainda não havia ido à Lua. O conto que abre o livro é justamente uma ficção sobre a primeira hora do ser humano na Lua, coisa que, hoje sabemos, não se deu da forma que foi escrita. Em outros contos, há alusões à vida inteligente em Marte, coisa que hoje, com a ciência atual, está praticamente descartada. Seja como for, a maior parte dos contos ainda fala de um futuro que ainda não chegou, quando as viagens interestelares serão uma realidade. A conquista do espaço é, realmente, o mote da maior parte dos contos, às vezes pelo ser humano e às vezes por outros seres que chegam até a Terra. Um dos mais fantásticos que achei é “Arena”, de Fredric Brown, quando há um curiosíssimo conflito, em uma dimensão paralela, entre um terráqueo e um alienígena, tudo sob a orientação de algum ser superior. O célebre Isaac Asimov também marca presença com destaque, pois o seu “O pequeno robot perdido” tem um dos enredos mais criativos e é um dos que vai mais longe na imaginação de como será a realidade que nos espera, em contexto interplanetário e robótico. Também há H. G. Wells, é claro, com “A estrela”, que mexe com alguns dos grandes medos modernos, ou seja, o de que venha alguma coisa do céu que afete terrivelmente a vida na Terra. “Caminho de fuga”, conto de William F. Temple, também é interessante, pois mexe com outro dos nossos fetiches, a “máquina do tempo”, e o usa como meio de alcançar uma espécie de “terra de remissão”, o paraíso que o velho Adão nos fez perder, muito embora venhamos, depois, a nos decepcionar com tal lugar. “O homem que Vênus vai condenar”, de Alfred Bester, é meio maluco, ou talvez bastante maluco, aliando poderes absurdos com conspirações governamentais, tudo isso conduzindo a uma dimensão paralela, mas é também um conto que se lê com interesse. “Filogenia às avessas”, de Amelia Reynolds Long, eu classificaria mais como conto “fantástico”, na sua tentativa de, sob hipnose, revelar verdades insuspeitas sobre a cidade perdida de Atlântida. “As respostas”, de Clifford D. Simak, que encerra o livro, apresenta uma inusitada sociedade intergaláctica “pós-humana”, ao mesmo tempo em que se descobre uma colônia perdida de humanos que encontraram a paz e a bem aventurança ao admitirem que nada faz sentido e que tudo é objeto do acaso. Os contos em geral são bons de ler, com exceção de “Bucólica”, de A. E. Van Gogt, que para mim foi praticamente impossível concluir e que, por isso, merece essa menção pouco honrosa. Eu apenas esperaria que os contos fossem um pouco mais “filosóficos”, como o conto de Simak foi, e talvez que espelhassem um pouco mais a realidade atual, a fim de comparação dos rumos que a humanidade vem tomando. Mas isso são apenas preferências pessoais. É interessante ressaltar que essa seleção privilegiou escritores de língua inglesa. Eu adoraria ter lido contos da ficção científica tcheca.

16/07/2019 – JÓSZEF NYIRÖ

“A última vontade” é um emocionante conto deste húngaro. Trata-se de um jovem casal que viaja até uma determinada vila ou cidade a fim de buscar tratamento médico para a mulher, que está muito mal. Tão mal que o médico, quando a vê, já sabe que ela está prestes a morrer. Acaba dando uma injeção nela e recomenda ao homem que se despeça dela quando ela recuperar um pouco da consciência. É o que ele faz, perguntando qual seria a última vontade dele. Debilmente, a mulher diz que quer ser enterrada na terra deles, no pequeno cemitério da aldeia deles. O homem concorda e a mulher logo morre. Bem, mas agora ele tinha um problema: como transportar o corpo da mulher até a cidade deles? Ele já havia gasto boa parte do seu dinheiro com a viagem até aquele lugar e foi preciso ainda dispensar outra boa parte ao médico. Foi perguntar em uma agência funerária quanto sairia o translado e quase caiu para trás quando soube do valor. Impossível pagar! Ele se desespera, volta para o corpo da mulher, estendido na cama, e fica um bom tempo sem saber o que fazer, até que decide comprar duas passagens de trem até a aldeia deles, pois para isso ainda sobrava dinheiro, e fazer de conta que a mulher dele está viva! Agora já é de madrugada e ele levanta a mulher e a carrega até a estação, procurando evitar contato com quem quer que seja. Consegue arrumar um vagão vazio, mas aos poucos as pessoas vão entrando. Ele tenta dar a impressão de que a mulher está dormindo e dá um jeito de mantê-la coberta. Mas as pessoas começam a perceber que há algo muito estranho com aquela mulher, perguntem ao homem o que se passa e uns conseguem perceber: a mulher está morta! O homem então confessa tudo, fala da sua pobreza, fala da promessa que fez à sua esposa, a última vontade dela, e que eles ainda tem uma filha na aldeia e ela precisa ver a sua mãe uma última vez. As pessoas ouvem, ninguém o censura, mas também ninguém fala nada. Ficam como estátuas. O homem chora. Vem então o homem que recolhe os bilhetes e uma tensão se instala no vagão, pois não só o homem, mas os demais passageiros temem que o sujeito faça uma cena e obrigue o pobre homem a tirar a mulher morta do vagão. O bilheteiro vê a mulher, leva um susto, mas decide deixar passar. O trem chega à aldeia do homem, ele agradece comovido aos colegas de vagão. Carregou à mulher até a sua casa, extenuado, deitou-a na cama, juntou as mãos dela sobre o peito e foi despertar com um beijo a filha adormecida: - Levanta-te, filha, chegou a tua mãezinha!

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 16/07/2019
Reeditado em 16/07/2019
Código do texto: T6697573
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