UM DIÁLOGO ENTRE A CANETA E A EMOÇÃO
E nesse “fotografar-se”, a poeta tematiza a luta universal da espécie contra o tempo, pelo qual se sente devorada, como em AUTORRETRATO III (p. 26), mostrando o duplo ser que se dilui entre a vulnerabilidade da carne e as decepções do espírito, desvendando o que é bastante transparente na poesia de Anna Liz: a transitoriedade das coisas.
Em O ESPELHO E A FACE (p. 30), a poeta discorre sobre a guerra entre a face e o tempo, mediada pelo espelho, cujo ofício é traduzir a velhice como um ciclo de maturidade, no qual se reflete a necessidade do enfrentamento dos medos a que o eu-lírico está condicionado. Contudo, é recorrente a dificuldade que o ser-poético tem de tomar direções, ladeado por desencontros, oriundos das visões fragmentadas de seu próprio semblante, porque difícil é lidar com as mutações ocasionadas pelo tempo no templo da face:
“...olho para o lado esquerdo, talvez seja direito/ (não sei, tenho dificuldade com lateralidade),/ há um caco de espelho, terei coragem de/encará-lo? Ele guarda o segredo da/ guerra entre o tempo e a face./ nesse momento, quero a paz da face inaudita. (...)a guerra entre o tempo e a face/ é uma guerra perdida...”
Em “Garganta dissonante” (p. 35), novamente a autora encara o desafio de questionar o tempo, desta vez, contudo, dentro de um contexto sinestésico, porque sóis, próprios da luz, da visão, adentram os sabores da fala e dos gritos que ecoam da garganta, colocando a morte como a cura de todos os males. O eu-lírico novamente defronta-se com a dicotomia vida/morte. E o que há por trás dessa dupla face de conceitos é um olhar científico e biológico e outro olhar, de reflexão filosófica, sobre o viver e o morrer.
“há mil sóis na minha garganta dissonante/reluzindo melancolias e inexistências./ faltam-me imaginação e valentia./ se há vontade de sobreviver,/ falta-me habilidade/ e nem as palavras que rabisco/curam-me da loucura vã./ viver é uma coisa estranha./ tudo nos mata: uma bala,/ uma faca,/ um olhar,/ uma palavra....e as ausências. / e não há cura para isso./ morrer talvez seja a cura...”.
Por isso, a persistência de buscar a cura para todos os males vai gerar um paradoxo que permitirá ao eu-lírico aportar num existencialismo desmedido, já que não há cura para tudo que mata, se o eu-poético, ele mesmo o diz que só morrer pode ser a cura.
No “Diário de Maria” (p. 36), Anna Liz se projeta no gênero do eu-lírico: é a voz feminina que traz toda uma história carregada de renúncias e lamentos, mas que continua a acreditar na eternidade do amor, apesar da passagem do tempo:
“estou aqui, bem aqui/ por detrás do tempo/que passa em silêncio./as horas duras são/meu alimento/e minha dieta é de renúncias/nasci para parir lamentos/ só o amor é eterno/entre a distância/do beijo”.
O verbo parir, de mãos dadas com a literariedade, sai de seu contexto semântico denotativo, para assumir uma postura poético-social, denunciando que a mulher, ao longo de sua história, só pôde “parir lamentos”, desistindo de seu espaço na sociedade, em favor do amor.
Na segunda parte do livro, a poesia se concretiza por meio de uma relação afetivo-amorosa, nascida do olhar; é a percepção do eu em relação ao outro; sua doação de sentimentos por intermédio da observação e da admiração. É o amor chamuscado pela luz que vem da visão, a qual evoca as labaredas e fogueiras dos desejos, para servir de ponte entre o amor-contemplação e o amor-paixão, até chegar ao precipício de deleites e êxtases, exatamente “Onde começa meu mundo” (p. 43):
“ Meu mundo começa nos teus olhos, (...)/meu mundo começa no teu olho aberto, aceso/ de pálpebras e cílios/labaredas,/ de íris e pupilas/fogueira -/ um fogo profundo, onde me resvalo/e calo e sumo no piscar de teus olhos.”
Na terceira parte da obra, o discurso é metalinguístico, no qual a poeta não apenas fala de si mesma, mas permite que a poesia também se revele, como em “O verso” (p.59), no qual criador e criatura contrariam os dispositivos impostos pelas correntes literárias de antanho e de hoje:
“não faço verso de modismo/ tampouco para a alta casta/ meu verso nasce povo/derrame o azeito do babaçu/e as águas do Apuá/.../ não faço versos de ricas imagens/pouco conheço/da teoria literária/meu verso nasce desajeitado/só que ele/nasce com alma.”.
Em Ciclo (p. 63), a poeta é uma observadora do mundo que a rodeia, da sala em que habita à janela da qual o espia:
“ Duas crianças brincam/Um imponente pé de caju/O vento suave/Balança/As folhas/A borboleta amarela/Sobrevoa as flores.../Na sala/Um corpo/Um caixão/A reza/E rostos/taciturnos.../A vida indo/Na sala/A vida acontecendo/Na janela.”
Nesse contexto, Anna Liz recria o cotidiano do olhar da poesia, por meio da qual constrói a relação dialética entre a morte e a vida. No campo sintagmático do ciclo da vida, a escritora interage com palavras cujo campo semântico tem intrínseca relação com a mobilidade: janela, vento, crianças, pé de caju, borboleta, flores; No ciclo da morte, o campo semântico se volta para a inércia: um corpo, um caixão, a sala.
A obra de Anna Liz traça o mesmo caminho proposto por Heráclito, pai da dialética, ao abordar questões relacionadas às mudanças, o vir a ser, mensurando o papel da singularidade humana em razão de sua capacidade de mutação e o papel da efemeridade dos objetos. Para o filósofo, “Tudo flui” e “Nada é permanente, exceto a mudança”. Como Heráclito, Anna Liz trabalha o “devir”, sempre mensurando o cotejo que faz entre a vida e a morte.
E o seu confronto entre o passado e o presente, entre a face e o espelho, entre a pena-escrita e a pena-sentimento, entre a poeta e a poesia, vai derramar suas reflexões naquilo que Hegel, mais tarde, chamaria de etapas da dialética: a tese e antítese, que se opõem entre si para chegar à síntese. Assim, o livro é o diálogo entre a lida do escrever e a sina do sentir, a primeira que abocanha a segunda; a segunda que se dissolve na primeira para a concretização da poesia/poeta.
Em SOB(RE) A PENA ESCONDIDA, há tantas penas escondidas que querem ser mostradas, que cada leitor vai propor novas leituras pra fazer novas descobertas. É um livro de poesia que encanta, que dá vontade de ler de novo e que nos permite dizer que outros virão para reiterar que Anna Liz é uma das boas poetas da literatura maranhense atual.
A professora e poeta Anna Liz, de Santa Luzia do Maranhão, nos brinda com seu quarto livro, intitulado SOB(RE) A PENA ESCONDIDA, publicado pela Penalux, Guaratinguetá-SP, 2018. E o título já sugere uma sob(re)posição de significados, livre de quaisquer tendências literárias preestabelecidas, para sugerir a plurissignificação que o seu texto poético propicia. O dualismo que emerge do Sob e do Sobre capta a luz da Liz que clareia o que está em baixo e em cima da poesia, para alcançar as duras sinas das penas, homônimos perfeitos, que remetem à pena-caneta que sobre o papel vai decifrando a pena-sentimento, sob o olhar mágico da alma da poeta: “escrever e penar/ é minha sina/ ou minha lida./ não sei.”
Dessa tessitura linguística, nasce a tríade poética que se esconde sob(re) o estigma das preposições dialéticas: a pena-caneta, a pena-sentimento e a pena-poeta, um pássaro que voa enquanto sente o que escreve e escreve o que sente. Nesse tripé de vozes interpostas, surge a tripla face escondida, que busca mostrar-se enquanto se exterioriza e, concomitantemente, ensimesma-se.
Assim, o título da obra é, na verdade, o primeiro verso do livro, cujas poesias são dispostas em três partes: Sob(re) a outra face, em que o eu-lírico luta incessantemente contra o tempo, ora num confronto físico, ora num enfrentamento psíquico; Sob(re) o mistério do olhar, em que a poesia dá prevalência para falar de amor sob a cumplicidade do olhar que, por vezes, perpassa o platonismo amoroso para deleitar-se nas fogueiras de um amor carnal; e Sob(re) a pena gasta, em que a metalinguagem se concretiza na verbalização da poesia pela poesia, na lida daquela que pena enquanto poeta e que poeta, enquanto pena.
Em meio a um discurso dialógico, o eu-poético descreve, na primeira parte do livro - Sob(RE) a outra face - seu Autorretrato II (p. 25), com a ajuda dos olhos de uma escritora-leitora, que soube captar, com maestria, a lente de uma intertextualidade que insinua o estilo ceciliano, sem dele, contudo, se aproximar, porque os versos annalizeanos são detentores de autênticas criatividade e originalidade:
“tenho esse rosto desfigurado/este sorriso pálido, amargo/este olhar perdido, vago/ tenho estas mãos enrugadas...”
E nesse “fotografar-se”, a poeta tematiza a luta universal da espécie contra o tempo, pelo qual se sente devorada, como em AUTORRETRATO III (p. 26), mostrando o duplo ser que se dilui entre a vulnerabilidade da carne e as decepções do espírito, desvendando o que é bastante transparente na poesia de Anna Liz: a transitoriedade das coisas.
Em O ESPELHO E A FACE (p. 30), a poeta discorre sobre a guerra entre a face e o tempo, mediada pelo espelho, cujo ofício é traduzir a velhice como um ciclo de maturidade, no qual se reflete a necessidade do enfrentamento dos medos a que o eu-lírico está condicionado. Contudo, é recorrente a dificuldade que o ser-poético tem de tomar direções, ladeado por desencontros, oriundos das visões fragmentadas de seu próprio semblante, porque difícil é lidar com as mutações ocasionadas pelo tempo no templo da face:
“...olho para o lado esquerdo, talvez seja direito/ (não sei, tenho dificuldade com lateralidade),/ há um caco de espelho, terei coragem de/encará-lo? Ele guarda o segredo da/ guerra entre o tempo e a face./ nesse momento, quero a paz da face inaudita. (...)a guerra entre o tempo e a face/ é uma guerra perdida...”
Em “Garganta dissonante” (p. 35), novamente a autora encara o desafio de questionar o tempo, desta vez, contudo, dentro de um contexto sinestésico, porque sóis, próprios da luz, da visão, adentram os sabores da fala e dos gritos que ecoam da garganta, colocando a morte como a cura de todos os males. O eu-lírico novamente defronta-se com a dicotomia vida/morte. E o que há por trás dessa dupla face de conceitos é um olhar científico e biológico e outro olhar, de reflexão filosófica, sobre o viver e o morrer.
“há mil sóis na minha garganta dissonante/reluzindo melancolias e inexistências./ faltam-me imaginação e valentia./ se há vontade de sobreviver,/ falta-me habilidade/ e nem as palavras que rabisco/curam-me da loucura vã./ viver é uma coisa estranha./ tudo nos mata: uma bala,/ uma faca,/ um olhar,/ uma palavra....e as ausências. / e não há cura para isso./ morrer talvez seja a cura...”.
Por isso, a persistência de buscar a cura para todos os males vai gerar um paradoxo que permitirá ao eu-lírico aportar num existencialismo desmedido, já que não há cura para tudo que mata, se o eu-poético, ele mesmo o diz que só morrer pode ser a cura.
No “Diário de Maria” (p. 36), Anna Liz se projeta no gênero do eu-lírico: é a voz feminina que traz toda uma história carregada de renúncias e lamentos, mas que continua a acreditar na eternidade do amor, apesar da passagem do tempo:
“estou aqui, bem aqui/ por detrás do tempo/que passa em silêncio./as horas duras são/meu alimento/e minha dieta é de renúncias/nasci para parir lamentos/ só o amor é eterno/entre a distância/do beijo”.
O verbo parir, de mãos dadas com a literariedade, sai de seu contexto semântico denotativo, para assumir uma postura poético-social, denunciando que a mulher, ao longo de sua história, só pôde “parir lamentos”, desistindo de seu espaço na sociedade, em favor do amor.
Na segunda parte do livro, a poesia se concretiza por meio de uma relação afetivo-amorosa, nascida do olhar; é a percepção do eu em relação ao outro; sua doação de sentimentos por intermédio da observação e da admiração. É o amor chamuscado pela luz que vem da visão, a qual evoca as labaredas e fogueiras dos desejos, para servir de ponte entre o amor-contemplação e o amor-paixão, até chegar ao precipício de deleites e êxtases, exatamente “Onde começa meu mundo” (p. 43):
“ Meu mundo começa nos teus olhos, (...)/meu mundo começa no teu olho aberto, aceso/ de pálpebras e cílios/labaredas,/ de íris e pupilas/fogueira -/ um fogo profundo, onde me resvalo/e calo e sumo no piscar de teus olhos.”
Na terceira parte da obra, o discurso é metalinguístico, no qual a poeta não apenas fala de si mesma, mas permite que a poesia também se revele, como em “O verso” (p.59), no qual criador e criatura contrariam os dispositivos impostos pelas correntes literárias de antanho e de hoje:
“não faço verso de modismo/ tampouco para a alta casta/ meu verso nasce povo/derrame o azeito do babaçu/e as águas do Apuá/.../ não faço versos de ricas imagens/pouco conheço/da teoria literária/meu verso nasce desajeitado/só que ele/nasce com alma.”.
Em Ciclo (p. 63), a poeta é uma observadora do mundo que a rodeia, da sala em que habita à janela da qual o espia:
“ Duas crianças brincam/Um imponente pé de caju/O vento suave/Balança/As folhas/A borboleta amarela/Sobrevoa as flores.../Na sala/Um corpo/Um caixão/A reza/E rostos/taciturnos.../A vida indo/Na sala/A vida acontecendo/Na janela.”
Nesse contexto, Anna Liz recria o cotidiano do olhar da poesia, por meio da qual constrói a relação dialética entre a morte e a vida. No campo sintagmático do ciclo da vida, a escritora interage com palavras cujo campo semântico tem intrínseca relação com a mobilidade: janela, vento, crianças, pé de caju, borboleta, flores; No ciclo da morte, o campo semântico se volta para a inércia: um corpo, um caixão, a sala.
A obra de Anna Liz traça o mesmo caminho proposto por Heráclito, pai da dialética, ao abordar questões relacionadas às mudanças, o vir a ser, mensurando o papel da singularidade humana em razão de sua capacidade de mutação e o papel da efemeridade dos objetos. Para o filósofo, “Tudo flui” e “Nada é permanente, exceto a mudança”. Como Heráclito, Anna Liz trabalha o “devir”, sempre mensurando o cotejo que faz entre a vida e a morte.
E o seu confronto entre o passado e o presente, entre a face e o espelho, entre a pena-escrita e a pena-sentimento, entre a poeta e a poesia, vai derramar suas reflexões naquilo que Hegel, mais tarde, chamaria de etapas da dialética: a tese e antítese, que se opõem entre si para chegar à síntese. Assim, o livro é o diálogo entre a lida do escrever e a sina do sentir, a primeira que abocanha a segunda; a segunda que se dissolve na primeira para a concretização da poesia/poeta.
Em SOB(RE) A PENA ESCONDIDA, há tantas penas escondidas que querem ser mostradas, que cada leitor vai propor novas leituras pra fazer novas descobertas. É um livro de poesia que encanta, que dá vontade de ler de novo e que nos permite dizer que outros virão para reiterar que Anna Liz é uma das boas poetas da literatura maranhense atual.