Diário das minhas leituras/28
29/04/2019 – WILLIAM SAROYAN
Do metalinguístico conto “Um dia frio”, tiro essas lições sobre o fazer literário:
“Apanhe uma pessoa e comece a trabalhar nela, dentro dela, tente, com muito amor, compreender o milagre do ser e a verdade essencial da existência. Revele o esplendor do mero fato de estar vivo e diga isso em grande prosa, simplesmente demonstre que a pessoa escolhida faz parte do nosso tempo, das máquinas, do fogo e da fumaça, dos jornais e dos sons. Não invente mentiras apenas porque acha que vai agradar a alguém. Ninguém precisa ser assassinado na sua história. Simplesmente relate um grande acontecimento; relate a humilde verdade desarticulada da arte que é o ser. Não há maior tema: ninguém precisa ser violento. A violência existe. Mencione-a, é claro, quando chegar a hora. Fale da guerra. Mencione a feiura, a desolação e até mesmo isso deve ser feito com amor. Mas enfatize a gloriosa verdade que é, simplesmente, existir. Esse é o assunto maior. Você não precisa criar um clímax triunfal. O sujeito sobre o qual você está escrevendo não precisa executar nenhum ato heroico ou monstruoso para engrandecer a sua prosa. Deixe-o fazer o que sempre fez todos os dias enquanto continua a viver. Deixe-o caminhar, e falar e pensar e dormir e sonhar e acordar e andar novamente e conversar novamente e mover-se e estar vivo. Isso é suficiente. Não há nada mais para se escrever a respeito; não há outra coisa. Você nunca viu uma história curta na sua vida. Os acontecimentos jamais apareceram para você na forma de um conto ou de um poema ou em qualquer outra forma. A sua própria consciência é a única forma que você precisa. A sua certeza é a única ação de que você necessita. Fale desse homem, reconheça a sua existência. Fale sobre o homem, o que é ser um homem".
01/05/2019 – ADELBERT VON CHAMISSO – PETER SCHLEMIHL
Eu conhecia a história de Peter Schlemihl, "O homem que vendeu a sua sombra", de Adelbert von Chamisso, de forma indireta, por meio de citações do ETA Hoffmann e do Hans Christian Andersen. Mas agora eu pude ler essa história, uma novela mais saborosa do que aquilo que ela inspirou. Não se trata de mero conto de fadas ou uma literatura fantástica descompromissada. Claro, narra-se coisas que só existem no mundo da imaginação (como é que alguém fica sem sombra?), mas é claramente uma alegoria para algo maior. Pela minha interpretação, a "sombra" representa uma tradição, um costume qualquer que é essencial para a vida em sociedade. Não ter a sombra, não cumprir com os ritos esperados, é sofrer preconceito e ser colocado à margem. Esses preconceitos podem ser tão fortes que nem mesmo o dinheiro, que geralmente abre tantas portas, pode ser capaz de fazer uma sociedade tolerar a "ausência de uma sombra". A busca por dinheiro e por sucesso pode ser frustrada se, para isso, você não mantiver as aparências da sociedade. As pessoas irão se voltar contra você, apesar do seu dinheiro. Não ter uma sombra irá afastá-lo da sociedade, mas é justamente esse afastamento que lhe permitirá viver melhor e mais próximo da sua verdade. Não ter uma sombra lhe mostrará sua individualidade. E então você não precisará mais se preocupar com as exigências da sociedade. Além de tudo, poderá ir muito mais longe do local em que ficaria restrito se mantivesse a sua sombra.
05/05/2019 – STEFAN ZWEIG
O homem conseguiu de novo. Depois me sensibilizar horrores com aquele conto do desertor no lago de Genebra, agora o austríaco Stefan Zweig me emocionou bastante com “Dívida tardiamente paga”. Trata-se de um conto escrito em formato epistolar no qual uma mulher relata à sua amiga de longa data o improvável encontro que teve com um antigo ator que ambas cultuavam na época da adolescência, uma daquelas típicas adorações que acometem a juventude. Mas agora o ator não passava de um mendigo que era desprezado por todos os frequentadores de uma estalagem. E essa mulher se recorda da sua paixão e lembra-se, sobretudo, de uma verdadeira cena que fez na casa desse ator tentando impedir com que ele deixasse a cidade, ocasião em que se colocou praticamente à disposição dele para que fizesse com ela o que bem entendesse, se bem que não houvesse nela nenhuma malícia nesse oferecimento. Ela se recorda que aquele homem, se pudesse, poderia facilmente ter se aproveitado dela. No entanto, não o fez. Comportou-se condignamente, não a humilhou de nenhuma maneira, e ainda demonstrou, por meio de suas ações, preocupação com o que dela pensariam. Apenas muito depois desse acontecimento é que ela se deu conta do quanto devia ser grata a ele. Então ela resolve fazer o que está ao seu alcance por aquele homem já alquebrado pelos anos e pelo desdém alheio e vai falar com ele na estalagem onde estava hospedada e o trata, em vez alta, com grandíssima consideração. Mente, diz que o marido dela é que era um fã dele, cita detalhes da vida dele, demonstra tamanho respeito por tudo o que aquele homem representava que as outras pessoas da estalagem, que sempre desprezaram aquele velho, começam a pensar que, talvez, devessem mesmo a ele alguma consideração. A mulher pergunta se teria a honra de tê-lo em sua mesa e começam a conversar coisas do passado, coisas que ela foi relatando porque podia se lembrar da época da sua adoração juvenil, mas que sempre atribuía ao seu marido. O ator, depois de ter se certificado que não estavam zombando dele, vive um sonho, literalmente um sonho, é coisa linda de se ler o que se passa no coração desse homem quando se vê lembrado e, sobretudo, respeitado outra vez. Como essa mulher era pessoa distinta que vinha de uma cidade maior, todos acharam que ela devia mesmo saber do que falava e não se questionou que aquele mendigo devia ter mesmo um passado dos mais honrados. Com isso, passaram a tratá-lo de outra maneira e arranjaram até uma pensão para ela. A mulher pagou a sua dívida, deu um momento de incrível felicidade àquele homem antes de morrer e fez com que, certamente, os seus últimos anos de vida fossem bem menos amargos do que iriam ser. Esse gesto fez, ainda, com que ela própria se curasse do esgotamento nervoso em que estava mergulhada. Um texto muito lindo, um conto sensível e que dá esperança para a gente que lê. Um conto memorável.
05/05/2019 – PRIMORES DO CONTO ALEMÃO
Depois de já ter lido quase toda a coleção “Maravilhas do Conto”, resolvi pegar emprestado uma edição de outra coleção nos mesmos moldes, a “Primores do Conto”. Assim como na coleção anterior, iniciei com os contos alemães. Encontrei uma edição que, somando tudo, é inferior às “Maravilhas do Conto”, mas que nem por isso deixa de ter momentos notáveis e que reforçam que a prosa alemã, embora não costume ser muito festejada, e ainda mais a prosa curta, é vigorosa e rende textos inesquecíveis. Um dos destaques do livro é “O homem que vendeu a sua sombra”, Adelbert von Chamisso, que, na verdade, é mais uma novela do que conto, mas, de toda forma, trata-se de algo que vai muito além da mera fantasia ou conto de fada: é uma parábola deliciosa sobre a resistência do indivíduo em face à sociedade. Outro momento bem interessante vem com Wilhelm Hauff e “História do falso príncipe”, que, como observado na introdução, parece conto saído das “Mil e uma noites”. Apreciei também o conflito amoroso entre dois jovens em “L’arrabbiata”, de Paul Heyse. Grandes momentos vieram com essa dupla de austríacos que cada vez mais me conquista, Artur Schnitzler, com “O dia de glória”, e Stefan Zweig, com o lindo “Dívida tardiamente paga”. Ambos possuem um parentesco temático, pois tratam de atores, um ainda na ativa e outro aposentado, mas que acreditam efetivamente que deveriam ser mais respeitados do que de fato o são. Enquanto no conto de Schnitzler o ator é vítima de uma perversa burla que conduz a um fim trágico, no conto de Zweig há uma improvável e emocionante valorização não apenas do ator, mas pode-se dizer até da humanidade como um todo, pois não há quem não seja digno da mesma consideração. Belíssimo. Também foi interessante, nessa seleção, ler um pouco das aventuras do Barão de Munchausen, assim como uma prosa curta do Goethe (“A bela genovesa”). De Hoffmann, há “Os espiões”. Há ainda vários outros que, ainda que não tenham me sensibilizado de maneira especial, tiveram bons momentos. Dito isso, não posso concordar com o que se diz na introdução da obra, que alega dificuldade para encontrar contos alemães, pois eles se expressariam melhor em literaturas de fôlego. Ora, como pode ser isso, se nem ao menos colocaram um conto do indispensável Heinrich von Kleist, que fazia conto antes mesmo de virar moda? Por que não há contos de Thomas Mann, de Hauptmann e de Wassermann? Ou mesmo de Rilke? Esses nomes todos aparecem no “Maravilhas do conto alemão” e ajudam a fazer dela uma obra melhor que “Primores do conto alemão”. Mas que vale a pena ler contos alemães, isso sempre vale. E é uma coisa que nenhum conto se repete nessas duas edições voltadas ao conto em língua alemã.
11/05/2019 – WITOLD GOMBROWICZ
Esse polonês é impressionante! Um surrealismo vigoroso e delicioso que vai muito além do absurdo. O autor leva às últimas consequências algumas de nossas tendências humanas e o resultado, ainda que possa ser eventualmente engraçado, é antes uma análise acurada do nosso comportamento. Entre os contos que mais gostei estão “Acontecimentos a bordo da goleta Banbury”, “Aventuras” (o mais surreal de todos), “Virgindade”, “O festim da Condessa Desfohle” e “Homicídio premeditado”. É interessante a estrutura do livro, que começa com o conto mais novo e segue até o mais antigo. Inicialmente, os nomes que a leitura de Gombrowicz evocou, conforme eu lia, foram o de Kafka e o de Borges. Mas depois, conforme se recuava no tempo, eu pude associá-lo a William Saroyan e Campos de Carvalho, que parecem ser seus parentes próximos. Quem gosta desses nomes, certamente gostará desse polonês.
15/05/2019 – IGNAZIO SILONE
Do divertidíssimo conto “Don Aristotile”:
"Ninguém ainda procurou estabelecer uma relação entre o aumento das pessoas que sabem ler e escrever e o das pessoas que se suicidam. Diz-se que a maior parte dos suicídios corresponde ao aumento da miséria. Mas não; a miséria sempre existiu. Há muitos miseráveis que não se suicidam. Raciocinemos um pouco: que faz uma pessoa que se suicida? Escreve cartas. Sempre... Invariavelmente. Toda pessoa que se suicida escreve cartas à mãe, à amante, ao delegado, aos credores, etc, etc. A lógica mais elementar nos demonstra, consequentemente, que se os suicidas não soubessem escrever cartas, não poriam termo à vida".
16/05/2019 – MARAVILHAS DO CONTO INDIANO
Outra viagem das mais ricas oferecidas pela coleção “Maravilhas do Conto” é à Índia. Trata-se, afinal, de uma civilização a que nós ainda não conhecemos tanto quanto ela merece ser conhecida. Por isso, há um certo estranhamento com as referências dos antigos contos indianos. Mas o livro, afinal, permite que essa distância diminua e nós nos inteiremos mais a respeito da história e do modo de vida dos indianos. Essa edição conta com uma outra versão do “Ramaiana”. A história já havia sido contada em “Maravilhas do Conto Mitológico”, em versão que agora creio sintetizada. Em “Maravilhas do Conto Indiano” há dois contos tirados de dentro dessa história, com destaque para “O desterro de Rama”. Dois contos também foram tirados do “Maabárata”, a epopeia mais antiga da Índia, destacando-se “Nalá e Damaianti”, uma movimentada história de amor, ambientada em um cenário onde os próprios deuses podem aparecer. Há por todo o livro muitos personagens associados ao hinduísmo, sobretudo os brâmanes. Há alguns contos pequenos tirados do “Panchatantra”, a primeira antologia de contos da Antiga Índia. São textos que estão próximos à fábula, pelo uso de animais e por encerrarem uma lição moral. “Os ressuscitadores de leões” foi o que mais apreciei. Mas há também “O tecelão que se fez passar por Vishnu”, conto que não faria feio no próprio Decameron, pois a história também se trata de uma daquelas burlas para conseguir um prazer carnal. A diferença é apenas que, em vez do cristianismo, como no caso de Boccaccio, o pano de fundo fica por conta do hinduísmo. Um ponto forte da coletânea é a inclusão de textos do “Oceano de Rios de Contos”, a obra referida aqui no Brasil no título da coleção “Mar de histórias”, que, no entanto, se bem me lembro, não inclui nenhum conto dessa obra indiana – apenas a referencia. Nas “Maravilha do Conto Indiano” há três contos dessa leva. “As cabeças trocadas” foi o que mais me agradou, com a sua história de duas pessoas que, depois de decapitadas e ressuscitadas, tiveram as cabeças trocadas, ou seja, ficaram no corpo errado. Mas há também “O Brâmane Haricharmã”, que repete o velho mote de um sujeito adivinhando por puro acaso as respostas de alguma pergunta e, com isso, se saindo bem diante de governantes e poderosos. Esse tema aparece em “Sem Gafanhoto o pássaro não seria preso”, conto popular árabe, e, já no século passado, volta a aparecer em “O bobo das adivinhas”, de Carmen Lyra, escritora de Costa Rica, devendo, é claro, ter aparecido muitas outras vezes ao longo da história. Do “Panchakianaca”, obra que reelabora temas do “Panchatantra”, há dois contos, um deles com o nome de “Nunca confies um segredo a uma mulher”, o que dá o tom de como eram (mal) tratadas as mulheres não só da Índia, mas do mundo todo, na literatura da Idade Média. Escrito já no século XV, os “32 contos de Baratacas” comparecem com “O Barataca impostor e licencioso”, que é, também, um conto que figuraria muito bem em meio às novelas de Boccaccio. Por fim, na parte final, há os contistas modernos. Pouca gente sabe, mas a Índia tem um escritor Nobel de Literatura: Rabindranath Tagore. Eu já havia lido um conto dele e apreciado bastante, mas “O Abandonado” reforçou a admiração por ele. Um conto sensível como o anterior, que mexe em feridas íntimas de todos nós, pelo menos os que já sentiram alguma vez o que é a carência e como nos comportamos infantilmente nessas situações. “Um momento de eternidade”, de Babani Batacharia, apresenta uma história tristíssima e de desfecho crudelíssimo, expondo tudo a que a miséria é capaz de fazer na destruição de um lar. Mas é em “Tempestade de Poeira”, de Ram Cumar, que o drama da miséria da Índia é exposto em todas as suas facetas. Sente-se vivamente o que é viver entre as camadas mais baixas daquela sociedade, à medida que o autor vai descrevendo o cenário e os seus personagens, todos com histórias tristes se entrecruzando – para piorar, em uma realidade na qual as tempestades de areia são terríveis e os ventos ainda derrubam os fracos barracos que aquela gente constrói para si. “Um aperto de mãos”, de Balwang Gargi também é uma ótima peça que evidencia o que é ser um estrangeiro em Calcutá, sobretudo chinês, mas também os que vêm do interior da Índia, sempre na esperança de ali encontrar melhor realidade, mas não podendo ser muito mais do que um chofer de táxi. Interessante a aproximação entre indianos e chineses, em oposição aos brancos. E a questão da religião não podia ficar de fora. Há, para isso, “Meu Deus, que crianças estas!”, de Yahspal, em que duas crianças, uma hindu e outra muçulmana, não conseguindo compreender as rotinas de segregação que as duas crenças se impunham e, por fim, terminam por reproduzir o conflito entre elas, para “surpresa” dos adultos. Uma crítica muito boa. Esses contistas modernos da Índia me surpreenderam positivamente e contribuíram para que o resultado da leitura fosse mais favorável. Aprendi várias coisas sobre a Índia.